Cantor Guilherme Arantes se apresenta em Santos e fala do cenário musical

Cantor com 47 anos de carreira se apresenta nesta quinta-feira (4)

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  04/08/22  -  09:35
Atualizado em 04/08/22 - 23:00
Guilherme Arantes “O mundo foi se tornando feio e os artistas tiveram que aderir”
Guilherme Arantes “O mundo foi se tornando feio e os artistas tiveram que aderir”   Foto: Marcia Gonzalez/Divulgação

Ele renega o que chama de ‘álgebra’ na arte, mas os números não mentem: em 47 anos de carreira solo, foram 25 temas de novelas, dezenas de composições gravadas por outros músicos, milhões de álbuns vendidos, além de menções no rol de artistas mais influentes do Brasil e das 100 melhores músicas – por Meu Mundo e Nada Mais – da revista Rolling Stone. Aos 70 anos, sem papas na língua e cada vez mais comprometido com o Brasil e sua arte, Guilherme Arantes fala da infância musical, do seu estilo de compor e do panorama artístico e político brasileiros de hoje. O músico faz show na noite desta quinta-feira (4), em Santos.


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Você começou a tocar com 5 anos. Como foi o seu encontro tão precoce com a música?


Coisas do meu pai. A família dele era muito musical, lá de Crato, no Ceará. A mãe do meu pai nasceu lá, os antepassados tinham um conservatório. Tenho um primo, Solano Ribeiro, que foi diretor geral dos festivais da canção, tanto na Record quanto do FIC (Festival Internacional da Canção, Globo). Meu pai tinha ainda um irmão que trabalhava na Record. Fui várias vezes no auditório, nos programas Fino da Bossa, Jovem Guarda. Meu pai me punha para tocar bandolim, cavaquinho, violão... Viu que eu tinha jeito, com 5 anos ele comprou um piano. O sonho dele era que eu vivesse de música erudita, mas fui seguindo a MPB.


Você teve alguma influência decisiva ou tudo da MPB foi marcante?


Muitas influências, Roberto, Jorge Ben, os Beatles,Mas meu maior ídolo quando menino era Chico Buarque. Eu me identificava porque ele parecia muito comigo. A gente teve uma família abastada, meu pai era médico. Fui fazer Arquitetura inspirado no Chico, que era o maior exemplo de talento, as canções muito bem construídas. E o Jobim... ele era mais velho, era como um pai; o Chico, como um irmão mais velho. Mais tarde, peguei uma ligação profunda com Milton Nascimento, do Clube da Esquina. Fiquei maluco com a beleza e a musicalidade daquela geração. Depois, ainda, o Taiguara, Belchior, Egberto Gismonti... Continuo maluco por essa música nobre brasileira.


Como vê a música brasileira atual?


Sou bastante revoltado com a música ruim. A parte qualitativa da música continua existindo, mas já não há o espaço privilegiado dos anos 60, 70 e 80. A partir dos anos 90 começa a ocorrer um fenômeno interessante. A cultura digital é muito imediata, contagiosa e se espalha rápido. a chegada das redes sociais, da troca de informações instantânea, foi favorecendo um movimento pragmático, de utilitarismo, em que a música passa a ser um pano de fundo na cena cultural e social.


A imagem do artista se sobrepõe à sua música?


Não é só isso. Existe o surgimento de um movimento que eu chamo de A Balada. É um fenômeno mundial, em que a música passa a ser fabricada para funcionar naquela circunstância, favorecendo uma superficialidade típica do coletivo ‘em festa’. Vai ocorrendo uma nivelação por baixo, em um movimento de buscar a qualquer preço o que funciona nesse contexto. Veja, por exemplo, o Festival de Woodstock. O Jimmy Hendrix entra para tocar o hino americano, põe fogo na guitarra... ali tem uma proposta estética, ética, crítica. Hoje, isso não funciona, porque a multidão só quer o entretenimento.


Como você vê as redes sociais e as plataformas de música nesse contexto?


O papel se inverteu: a multidão não vai para ver o artista. É o artista que vai para ver a multidão. O protagonismo do show, hoje, é exercido pela plateia. Por uma questão geracional, a gente começa a perder o interesse dessa plateia. Mas, ao mesmo tempo, ter milhões de views vai se tornando desinteressante também (para um artista como eu). Quando você, por exemplo, tem Caneta Azul, com 30 milhões de visualizações, e você vê, por exemplo, Tom Jobim tocando com Claus Ogerman (compositor e arranjador alemão) com 10 mil visualizações... O que você prefere? Ser um Tom Jobim com a orquestração do Claus Ogerman ou o Caneta Azul? Nem tudo que é sucesso, é interessante. Tem uma hora que a gente começa a se descolar da palavra êxito. Já representou muito, houve uma época em que você batia no peito e se orgulhava. Tudo isso vai deixando de ter significado, porque se tem uma indústria de resultados que se apartou de qualquer conceito de arte. Não estou vendendo quantidade.


Você tece críticas ao sertanejo...


Critico essa hegemonia sertaneja que aconteceu embalada pela potência do agronegócio, pelo ambiente das cidades do Centro-Oeste. O movimento alcançou magnitude numérica e um faturamento que a gente nunca sonhou em obter. milhões de casas, de carros, de joias, de ostentação... É constrangedor apenas perseguir a ‘álgebra’. Esse movimento se transformou em um partido político, é a fase final de uma estética. Não vou incluir os bons músicos da música caipira, sertaneja, como Renato Teixeira e Almir Sater. há duplas importantes que fizeram coisas belas. Chitãozinho e Xororó, Pena Branca e Xavantinho, estou falando de um movimento definido pelo argentarismo. O objetivo do ser humano não é só enriquecer. Tem gente com voz boa, que sabe cantar, mas as novas gerações vão sendo mais pragmáticas e vendidas para esse projeto imediatista.


Quem você destacaria nas novas gerações?


Sou fã da Ludmilla, é uma grande cantora, uma figura com potência artística. Mas, no momento em que vê o que funciona pra ter milhões de views, ela faz um trabalho mais dentro do que vai dar certo – porque a indústria também cobra. Essa preocupação tem que ser ponderada. Veja: não é ruim a ambição. Os Beatles sempre fizeram o que o público esperava deles, mas o mundo foi se tornando feio e os artistas tiveram que aderir.


Como nasceu Meu Mundo e Nada Mais? O Guilherme compositor vive o que canta? Ou imagina o que canta?


Eu vivo o que canto. Sou muito de compartilhar o sentimento. Essa foi a forma que eu encontrei para ser o meu próprio letrista, para fazer a minha história de maneira bem independente. Por isso tenho pouca parceria. Meu Mundo e Nada Mais exemplifica muito bem o que eu sou. Eu falo que quero estar no escuro do meu quarto, à meia-noite, à meia luz... é muito eu, a minha solidão, minha incompreensão diante do mundo.


No início dos anos 80, você estava no auge do sucesso, com 20 e poucos anos. O sucesso subiu à sua cabeça? Faria algo diferente?


Algumas coisas eu teria feito diferente... por exemplo, me envolver com a Elis. Eu poderia ter estado presente com uma amizade mais profunda e tê-la ajudado a não sucumbir. Se fosse hoje, como amigo que pudesse ser influente para ela, poderia ter sido mais útil e a protegido. Mas eu também tinha 26 anos, quem era eu pra proteger uma mulher de 36 e ainda mais uma diva, uma figura daquele tamanho?


Na carreira, teria mudado algo?


Algumas incompreen-sões com a crítica, intolerâncias com jornalistas. Hoje, vejo com outro olhar. Me dediquei muito a ler o que foi a história da música brasileira e do jornalismo cultural brasileiro. me debrucei para entender o processo da opinião cultural no Brasil. Era um assunto que não me interessava quando eu tinha 30 anos e deveria ter interessado, porque teria me dado um lastro de cultura, eu poderia entender melhor o meu papel na música e a minha interface com a opinião do Brasil.


E o que descobriu?


Passei a entender como foi vista a minha chegada na música e porque me enxergaram do jeito que enxergaram... O músico tem, classicamente, uma prevenção de jornalista – isso é no mundo todo. Aquilo de ficar me achando, que faço coisas lindas e não tenho reconhecimento... Abandonei esse personagem reclamão e rabugento.


Você acredita no Brasil? Como vê o País?


Duas coisas são fundamentais para a sobrevivência do Brasil: o humor e o delírio. Eu me refiro à criatividade da ótica do realismo fantástico... Nos anos 70, vivemos uma ditadura pesada e o que nos ajudou a sobreviver foram livros como Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. É preciso reavivar isso, tenho a impressão de que vivemos em um universo cru e empobrecido, sem fantasia, em que se veem os lados crispados, o absurdo dessa guerra de narrativas, a fabricação da pós verdade. Estamos nesse Corinthians e Palmeiras, esse embate primitivo a que estamos reduzidos. Mas o Brasil não se extingue assim, existe uma alma profunda... O Brasil vai encontrar a sua fórmula. Acho que a briga é importante, ter pelo que lutar, de esquerda, direita. Já pensou um país onde não acontece nada? O Brasil está vivo.


Conhece Santos, tem memórias daqui?


O primeiro beijo que eu dei foi em Santos. Tinha um tio que morava aí, Descia muito para casa dele... Mas tenho memória forte da minha mãe. A última vez que eu a vi foi do palco, no Atlântico Hotel, no show no final de 2019. Ela ficou comigo dois dias, depois eu embarquei para Espanha e não vi mais a minha mãe, que morreu no final de 2020. Lembro da Praça Independência quando era menino, tinha um cachorro quente, a gente chegava de carro e comia. Era o gosto de Santos na infância.


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