Margareth Menezes conta, em entrevista, sobre a carreira, preconceito e futuro

“Detestava músicas que tratavam negros e negras de forma pejorativa”

Por: Beatriz Araujo  -  26/11/21  -  10:50
Baiana Margareth Menezes dará tom ao palco virtual do Som das Palafitas neste sábado.
Baiana Margareth Menezes dará tom ao palco virtual do Som das Palafitas neste sábado.   Foto: Divulgação/José de Holanda

A potência da baiana Margareth Menezes dará tom ao palco virtual do Som das Palafitas neste sábado. Margareth está prestes a comemorar 35 anos de carreira. Seu marco como artista é inegável: neste ano, aos 59 anos de idade, Maga, como é chamada, foi considerada uma das 100 personalidades negras mais influentes do mundo pela ONU. Em entrevista exclusiva para A Tribuna, ela fala sobre a música preta no Brasil, nuances de sua trajetória e reverencia Gilberto Gil e Caetano Veloso – os homenageados desta edição do festival santista.


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Como você enxerga, hoje, a Margareth dos anos 80? O que você, artista negra, símbolo de resistência, mudou de lá para cá?


Erros e acertos são pilares da construção de qualquer caminhada. Com certeza, em muita coisa eu poderia ter tido mais maturidade. A questão é que, para mim, tudo era muito inédito e inesperado. Fui arrebatada muito nova para um universo de coisas do qual eu não fazia nem ideia. O que aconteceu comigo no começo da carreira depois, das gravações de Faraó e Elegibô, foi absolutamente incrível. As coisas que eu vivi nesses 34 anos de carreira e, principalmente, nos 20 primeiros anos, me enalteceram como uma artista mundial. Não sou uma pessoa vaidosa, no sentido de ter me colocado nesse lugar de virar um pavão e começar a criar estigmas de estrelismo, mas talvez eu tivesse que ter feito isso. Eu viajei muito e participei dos maiores festivais do mundo, mas quando chegava no Brasil, e principalmente na Bahia, eu não tinha espaço nem pra me apresentar no Carnaval. Sempre foi uma luta muito maior pra nós, artistas negros, que não faziam parte do processo da visão comercial e empresarial do Axé Music. Eu detestava aquelas músicas que tratavam os negros e negras com adjetivos pejorativos. Sempre fui assim. Acho que a educação que recebi dos meus pais em relação ao respeito aos outros e a mim mesma sempre foram referências no meu caráter. Por não me ver ralando até o chão e por cantar músicas com temáticas afroconstrutivas, não me encaixava muito no arquétipo popularesco da época, sempre fui mais pra afropop. Além do que, eu sempre tive opinião própria sobre as coisas e liberdade de fala, enquanto na época a maioria dos artistas, principalmente os de bandas e grandes blocos, eram empregados e tinham pouca ou nenhuma autonomia. Só os da cena independente eram livres e, por isso, eu digo que venho do circuito independente da música. Acho que fui a primeira artista feminina negra no Brasil a ter seu próprio selo, ter seu próprio bloco e ter um escritório independente. Isso me custou mais de oito anos sem gravadora.


Você foi considerada uma das 100 personalidades negras mais influentes do mundo. O que esse reconhecimento significa para você?


Para mim, foi uma grande e grata surpresa. Foi meio difícil acreditar estar sendo citada pela ONU juntamente com Beyoncé e Jay-Z. Uma grande honra pra mim, porém isso me mostrou um outro lado das coisas. Nem todo mundo que diz vibrar com suas conquistas está preparado para ver uma pessoa voar mais alto. Eu tenho uma filosofia comigo: quanto mais uma pessoa, seja ela irmão ou irmã preto ou de valor e humanidade, chegar a lugares de destaque pelo mundo, com certeza será uma alegria profunda para mim. Penso que isso soma para todos nós. Não busco desconstruir ninguém. Todos temos erros e acertos nas nossas vidas, mas se contribuir para a construção de um mundo melhor, para mim, já está valendo.


Você consideraria Gilberto Gil, um dos homenageados desta edição do Som das Palafitas, como um dos artistas negros mais influentes no imaginário brasileiro?


Gil e Caetano, ambos são negros e dois grandes gênios da música popular brasileira e mundial. Vejo tanta negritude no Caetano quanto no Gil. Acho que ambos são artistas à frente de seu tempo. O fato da gente identificar a negritude de Gil mais de imediato pelas características físicas negroides mais acentuadas não pode fazer a gente deixar de reconhecer a afro ascendência dos Veloso. Eles falam sobre isso e é legítimo. Ambos trouxeram e trazem para nós reflexões profundas sobre racismo e preconceitos em várias músicas. Para citar uma emblemática, O Haiti, exemplifica muito bem isso. Se fizer uma varredura sobre esse assunto, e outros que dizem respeito à discriminação racial e comportamental, homofobia e de gênero, e também em relação às temáticas ligadas ao panteão das religiões, além de críticas reflexivas sobre política, tudo isso, nós encontraremos na obra dos dois. Outra coisa que vai além disso é a poesia e a destreza com a Língua Portuguesa. Para mim, não dá pra desassociar esses dois artistas veteranos geniais, que aos 80 anos ainda estão produzindo, modernos e anos-luz à frente!


Você possui alguma história com eles que gostaria de compartilhar?


Tenho várias histórias com ambos. Me sinto muito agraciada quando vejo ao longo da minha carreira quantas vezes tive oportunidade de estar ao lado, assistindo, convivendo, cantando, gravando. Olha, nossa, aí eu me sinto muito chique! Das coisas todas, vou citar o projeto Margareth Menezes Para Gil & Caetano. Um DVD que gravei quando eles estavam completando 50 anos de carreira. Tive a honra de gravar 12 músicas de cada um, e contar com a participação de ambos. Foi um projeto com o qual rodei os teatros do Brasil por cinco anos. Tive muito apoio de Flora Gil e de Paulinha Lavigne. Foi maravilhoso!


Os trabalhos de Gil e Caetano impactaram sua trajetória de que forma?


Eles, juntamente com outros artistas da geração anos 60 e 70, nos fizeram pensar e até hoje ainda fazem. Não temos que ter pudor de reconhecer e reverenciar esses caras. Quando falamos em artistas internacionais como Rolling Stones ou Led Zeppelin, não temos reservas. Para mim, a única diferença entre o patamar desses artistas em relação aos nossos gênios da MPB é um só: o povo brasileiro se subestima às culturas estrangeiras. Eu também gosto e curto muito a música internacional, mas não acho que eles sejam melhores que nós. O que eles têm, e muito mesmo, é dinheiro, além de mais cultura e autoestima elevada.


Você reconhece que há uma nova geração de artistas negras que dão voz ao movimento negro e ao feminismo negro – como você sempre fez? Qual a importância dessa ‘renovação’ de referências?


No AfroPop, no Movimento Axé, na música Funk Brasileira, graças a Deus, eu vejo surgir poetas, poetizas e representantes da música preta do Brasil. Temos Iza, Ludmilla, Anitta, Larissa Luz, Negra Li, e tantas outras. Pra mim, a música preta é sempre a que traz renovação na cena pop, pela imensa diversidade rítmica e criatividade. Sempre que a música urbana se renova, onde tem sangue africano na essência urbana, a produção artística tem uma alta célula afro contemporânea no conceito artístico. As células afro na construção das novas tendências de bits urbanos e tecnológicos são como sal, cominho e pimenta no tempero das comidas. Cada pitada a mais ou a menos traz um sabor especial. Quando as influências da música e da cultura black são acrescentadas aos arranjos, dá liga pop diferenciada e isso é fato.


Nos últimos meses você participou de diversos singles e projetos paralelos. Já seu último álbum foi lançado em 2019. Há algum novo projeto pessoal que você está desenvolvendo e poderia compartilhar?


Em relação a esse assunto estou muito sensível porque o maestro Leitieres Leite, que perdemos há tão pouco tempo, estava junto com Kastrup, produtor paulista, preparando a produção e a direção musical no meu novo trabalho. A morte do maestro foi um grande baque pra mim, não só por esse estava motivo, mas por tudo que ele estava fazendo e o que ele significa para nós artistas e músicos. Ainda estou me refazendo e reorganizando tudo, brevemente teremos novidades.


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