Mais que ícone do samba, a deputada Leci Brandão também é uma ativista social

Em entrevista exclusiva para A Tribuna, ela falou sobre religião, direitos, política, música e muito mais

Por: Ronaldo Abreu Vaio  -  22/12/21  -  06:52
Leci foi precursora de amar quem se bem entende, quando nem se falava nos direitos LGBT
Leci foi precursora de amar quem se bem entende, quando nem se falava nos direitos LGBT   Foto: Matheus Tagé/AT

Leci Brandão também é da Silva. Pela música ou na política, vem tentando honrar a estirpe que carrega no sobrenome – e na vida. De sangue, o parentesco é com o samba. E, ao olhar para o céu, recebe o conselho do caminho a seguir, pela devoção aos orixás. Esse é o resumo da trajetória – a sua trajetória – que Leci relembra nesta entrevista, concedida em recente visita a A Tribuna. Dos tantos embates sociais, foi precursora na defesa do direito de amar quem se bem entende, quando ainda não se falava nos direitos LGBT. Está lá, na letra de As Pessoas e Eles, do álbum Questão de Gosto, do longínquo ano de 1976.


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“Foi um fato que vi em Copacabana, uma ofensa a um rapaz. Falo (na música) da minha reflexão daquilo: ‘As pessoas olham pra eles com olhar de reprovação/As pessoas não percebem que eles também têm porquê e razão/As pessoas não entendem porque eles se assumiram/Simplesmente porque eles decidiram/Por uma verdade que elas proíbem’. Essa música deu uma chacoalhada”, recorda.


Aliás, a chacoalhada começou antes, quando Leci se tornou a primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira. Aos 77 anos de idade, 24 álbuns, entre LPs, CDs e compactos, e 2 DVDs, da ampla janela de sua música, Leci viu muita coisa acontecer não só no samba, mas na música brasileira em geral.


“Depois que acabou a ditadura, pensaram o seguinte: ‘vamos botar esse pessoal pra sambar, dançar bastante – e não pensar’. Hoje, você compõe uma música com uma palavra boba e faz sucesso. é planejado – e não só no samba”.


Samba e rap
A raiz do samba, que mescla a alegria do ritmo ao canto da realidade e das mazelas do povo mais sofrido, acabou diluído na indústria da música, crê Leci. “Vieram os grupos dos anos 90, do amorzinho... nada contra, mas não havia uma letra que remetia as pessoas a pensar, lutar”.


Nesse sentido, com o passar do tempo, a voz crítica – e necessária – da música das periferias se materializou nos versos do funk e, especialmente, do rap, na visão de Leci.


“Conseguem falar da realidade de suas comunidades de maneira bem enfática. coisa que outras compositores faziam. Na época da ditadura, Chico (Buarque), Ivan Lins... não com a forma intelectual desses compositores, mas eles têm gírias, um jeito cru e verdadeiro de descrever a realidade vivida”.


Transcendência
O chão é muito raso para receber a imensidão do destino. Quando o caminhar se ergue ao infinito, nada permanece escondido. Após um hiato de cinco anos sem gravar, nos anos 1980, a mãe de Leci a levou a um centro espiritual onde lhe foi garantido por uma entidade que ela retomaria a carreira, mas que ela sairia do Brasil. “Aí, eu duvidei”.


Meses depois, recebe um convite da Odebrecht, que participava da reconstrução de Angola, após uma longa e cruel guerra civil, para fazer um show no aniversário da capital, Luanda. “Só lembro de uma coisa: quando desci do avião lá, me ajoelhei e bati a cabeça na terra, para agradecer e pedir desculpas ao caboclo Rei das Ervas (o orixá), porque eu havia duvidado dele”.


Em julho de 1985, assinou contrato com a gravadora Copacabana. No mesmo ano, lançou um dos álbuns mais bem-sucedidos de sua carreira, com clássicos como Isso É Fundo de Quintal e Agradeço a Vida. Também gravou a Saudação ao Rei das Ervas – prática que teria dali em diante: encerrar cada álbum com uma homenagem a um orixá.


Política
Em 2010, veio o convite. Os orixás aquiesceram: “Já tinha cumprido minha missão na arte, mas que havia mais uma lição pra mim, que eu poderia continuar cantando e fazer muito mais para defender as pessoas, que a caneta tem uma função social e eu deveria manter o compromisso com meu povo e segmento”.


Assim, naquele ano, Leci foi eleita deputada estadual em São Paulo, pelo PCdoB, com mais de 85 mil votos. Foi reeleita duas vezes, em 2014 e 2018. E segue na luta, seja na Assembleia ou na canção, pelo sonho de um País igual para todos.


“Sonho que houvesse condição para que a população mais pobre, vulnerável, tivesse chance de estudar. Deus deu inteligência para todos, mas é preciso oportunidade. Não acredito que, porque mora na favela, não tenha condição de ser um engenheiro, um arquiteto, um médico”.


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