Escritor Ruy Castro fala sobre esquecimento de autores e movimento modernista

Jornalista lançou As Vozes da Metrópole, em que lista 41 nomes do início do século 20 e desapareceram

Por: Estadão Conteúdo  -  31/12/21  -  09:06
O autor e biógrafo Ruy Castro, lança  As Vozes da Metrópole, pela Companhia das Letras
O autor e biógrafo Ruy Castro, lança As Vozes da Metrópole, pela Companhia das Letras   Foto: Divulgação

Benjamim Costallat, Théo-Filho, Chrysanthème, Agrippino Grieco – para a maioria dos leitores de hoje, esses nomes pouco ou nada significam. Mas, no Rio de Janeiro dos anos 1920, eles formavam uma constelação de escritores que traduziam com perfeição a ebulição e a modernidade vivida pela cidade. Uma geração que registrou desde fatos mundanos, como festas regadas a álcool e cocaína, até conflitos sociais e políticos.


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A partir da década de 1930, porém, iniciou-se um gradual e bem sucedido processo de esquecimento desses autores. “Um dos motivos é que eles eram jornalistas e escritores profissionais, não playboys e diletantes”, critica o autor e biógrafo Ruy Castro, que lança agora As Vozes da Metrópole (Companhia das Letras), em que lista 41 desses nomes fora do catálogo. Castro acredita que muitos desses autores banidos das prateleiras já praticavam uma literatura modernista antes mesmo da eclosão da Semana de Arte de 1922, mas, mesmo assim, foram tachados de ‘pré-modernistas’, o que também ajudou em seu processo de esquecimento.


Quais motivos explicariam o esquecimento hoje da literatura desses autores?


Um dos motivos é que eles eram jornalistas e escritores profissionais, não playboys e diletantes, membros de uma ação entre amigos. Trabalhavam no mercado, e o mercado é dinâmico. Além disso, não tiveram seus nomes martelados diariamente desde os anos 1950 pela indústria acadêmica da USP. Mas o principal motivo foi a criminosa divisão da literatura brasileira, que desqualificou a geração dos primeiros 20 anos do século 20 como ‘pré-modernista’ – como se ela só tivesse existido para fazer a preliminar do jogo principal, que seria a Semana de Arte Moderna. Alguns deles eram Euclydes da Cunha, Edgar Roquette-Pinto, Lima Barreto, João do Rio, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Julia Lopes de Almeida, Gilka Machado, Carmen Dolores, Orestes Barbosa, Alvaro Moreyra, Agrippino Grieco, Elysio de Carvalho, Adelino Magalhães. Esse pessoal pode fazer a preliminar de alguém no Brasil?


Qual a força do movimento modernista nesse esquecimento, uma vez que aqueles autores não se enquadram perfeitamente nas propostas da turma da Semana de 22?


Foi a força da propaganda e das frases feitas, uma delas, a de que a Semana foi um rompimento. Mas rompimento com quê? O verso livre e sem rima já era praticado por Mario Pederneiras desde 1910 e depois por Manuel Bandeira. Os contos de Adelino Magalhães, todos em livro antes de 1920, já tinham fluxo da consciência, ações simultâneas e até palavrões. Orestes Barbosa já escrevia naquele estilo telegráfico, picotado, que depois seria copiado por Oswald de Andrade. A Academia já não era levada a sério no Rio desde a morte de Machado de Assis, em 1908. E os poetas parnasianos já estavam desprestigiados muito antes da morte de Olavo Bilac em 1918. Nas artes plásticas, em 1922, já existiam Vicente do Rego Monteiro e Ismael Nery. Em música, Villa-Lobos, Luciano Gallet, Pixinguinha, Sinhô, sem falar em Ernesto Nazareth. A Semana, portanto, arrombou uma porta aberta. Quando se diz que o Brasil de 1922 era um atraso, que precisava ser ‘atualizado’, e que Mario e Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Sergio Milliet, Candido Motta Filho e outros vieram para nos salvar, leia-se: quem precisava ser atualizado eram eles, que até pouco antes eram parnasianos – e alguns continuaram sendo...


Os autores relacionados no livro sofreram igual esquecimento? O caso de Chrysanthéme foi o mais acentuado?


Não, Chrysanthéme foi apenas uma. Exceto Euclydes, toda aquela geração foi cancelada pela USP. O próprio Lima Barreto, que Mario de Andrade chamava de ‘escritor de bairro’, só foi redescoberto nos anos 50. Gilka Machado está tendo o reconhecimento que merece? E João do Rio? A poesia modernista resume-se hoje nos poemas-piada do Oswald. Se não for poema-piada não é ‘moderno’. Mas Fernando Pessoa, T. S. Eliot, Paul Valéry, Federico Garcia Lorca e o próprio Pound, todos daquela época, nunca fizeram poema-piada. Será que não eram modernos?


É possível dizer que a literatura daqueles autores só foi possível existir na década de 20, quando o entusiasmo pela modernização alimentava a ideia da decadência dos costumes?


Os autores cariocas dos anos 20 não precisavam se deslumbrar com a modernização. Já estavam acostumados a ela. Em 1922, o Rio tinha prédios de 10 andares com elevador, 20 jornais diários, farta iluminação elétrica, sexo, drogas, praia, Carnaval. A cidade não dormia. Os modernistas, à luz dos lampiões a gás, é que viam tudo isso como novidade – e, para eles, era mesmo...


Finalmente, a Revolução de 30 foi a pá de cal nesse tipo de escrita, entre outras coisas?


Foi uma pá de cal, sim. Principalmente na escrita modernista. Quando Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, Marques Rebelo, Dyonelio Machado e Érico Veríssimo apareceram a partir de 1930, tudo mudou por aqui. Aliás, assim como a Semana condenou os autores pré-22 ao ‘pré-modernismo’, a Revolução de 30 instituiu um ‘pós-modernismo’ que despachou a Semana de forma fulminante para o passado. E com razão, porque Oswald, Menotti, Guilherme, Cândido Motta Filho e os outros eram produtos típicos da República Velha. Eram cama e mesa com Washington Luiz, Julio Prestes e a elite quatrocentona, à qual vários deles pertenciam. Representavam tudo que a Revolução de 30 veio derrubar. Enfim, o Modernismo só tinha sentido na República do Café com Leite e, quando esta acabou, os poemas-piada, pau-brasis e antropofagias foram enterrados junto. Até, claro, serem ressuscitados e entronizados pela USP.


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