Cineasta Luiz Bolognesi comenta importância do cinema ativista: 'Precisamos de mobilização'

Em entrevista exclusiva, ele comenta o sucesso de 'A Última Floresta', premiado no Festival de Berlim

Por: Bia Viana  -  08/07/21  -  06:47
  Luiz Bolognesi recebeu o grande prêmio público da mostra Panorama no 71º Festival de Berlim
Luiz Bolognesi recebeu o grande prêmio público da mostra Panorama no 71º Festival de Berlim   Foto: Divulgação

Cada vez mais importante como instrumento de conscientização ambiental, o cinema tem assumido um papel cada vez mais importante como agente transformador. Trazendo a discussão de pautas como o genocídio indígena e o desmatamento, o diretor Luiz Bolognesi conduziu A Última Floresta, longa produzido pela Gullane e Buriti Filmes em associação com a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental (ISA), ao grande prêmio público da mostra Panorama no 71º Festival de Berlim, um dos mais importantes eventos de cinema do mundo.


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Em entrevista ao jornal A Tribuna, o cineasta paulistano comenta sua experiência com os yanomami e as principais influências do projeto, que é coescrito com Davi Kopenawa Yanomami, escritor, xamã e líder político yanomami.


Como foi sua vivência na aldeia e o início do projeto?


Fiquei com eles quase duas semanas para fazer o roteiro, porque é uma área bem afastada. Não dá para chegar nem de carro nem de barco. Não tem estrada e os rios não são navegáveis, porque é montanha. É um aviãozinho que nos deixa lá. Na primeira viagem, fui com a Carol Fernandes, minha assistente de produção e diretora. Na segunda viagem, fui com uma equipe de cinco pessoas. Aí, ficamos lá filmando por cinco semanas.


O convívio com eles foi incrível. Quando chegamos, havia uma certa tensão no ar, porque as chuvas atrasaram muito no ano que filmamos e as roças não estavam produzindo na época que deveriam. Eles optaram por não ter Bolsa Família, então vivem de roça, coleta na floresta e caça. Então, o clima era de muita fome no local. Foi muito complicado, porque levamos comida para nós e disseram que não podíamos dar nossa comida para eles. Mas, para nossa sorte, dois dias depois que chegamos, eles começaram a caçar muito. Eles até disseram que demos sorte para eles. Dali para frente foi uma fartura de caça, sempre com animais variados. Então, ficou esse clima de que demos sorte na caça, o que criou uma ótima energia.


O processo foi muito legal. Ao mesmo tempo, não sabíamos fazer nada na floresta, não sabíamos o que podia ou não comer, que horas poderia entrar no rio... Então, parecíamos crianças de quatro anos. E, por isso, eles cuidavam da gente e explicavam que o lugar era bonito, mas também tinha seus perigos. Teve uma troca, e eu aceitei o papel de alguém que sabe muito pouco. Foi um processo em que, às vezes, a equipe se assustava com a fragilidade do diretor, porque muitas vezes eu não tinha o controle da situação, e acabávamos encontrando soluções juntos. Foi um processo muito rico e muito carinhoso. Não vejo a hora de voltar e mostrar o filme para todos da comunidade.


Como foi a recepção dos Yanomami sobre a produção do longa?


A palavra é curiosidade. O Davi foi muito criterioso e deixou claro qual era os princípios dele para fazer o filme. Ele disse que não poderia ser um filme que mostraria os yanomami como vítimas. Ele disse: 'Somos pessoas fortes vivendo no nosso território, e temos problemas grandes, mas é preciso mostrar nossa força e nossa beleza'. Quando eu entendi isso, as coisas fluíram. Fomos recebidos lá em um ambiente de muito compartilhamento, boa vontade e muita curiosidade. Eles perguntavam de tudo sobre a minha vida, e nós também perguntávamos tudo sobre eles. Teve muita troca. Eles nunca tinham assistido um filme e acabaram fazendo um conosco.


Você escreveu o filme em parceria com o Davi Kopenawa Yanomami, e isso com certeza trouxe mais proximidade ao olhar dos yanomami no filme. Como foi esse processo criativo para vocês?


Foi extremamente rico. Uma troca muito grande, em que eu aprendia muito. Por exemplo, logo de cara, o Davi falou: 'o cinema é um sonho. Então, precisamos sonhar juntos para fazer o roteiro. Você vem aqui para a aldeia, fica algumas semanas comigo, a gente sonha, conversamos sobre os sonhos e fazemos o roteiro'. Lindo, não é? E o filme é assim.


O filme tem sonhos. Ele foi concebido através dos sonhos e da escuta dos mitos. O Davi deixou claro que queria contar os mitos, que para eles é a verdade pura, no mesmo nível de realidade. Ele queria que o filme contasse a história dos yanomami para os próprios jovens yanomami. Para os yanomami, os sonhos e mitos são material da realidade, então pertencem ao material do documentário.


  'A Última Floresta' dialoga com temas socioambientais com foco na luta de preservação dos yanomami
'A Última Floresta' dialoga com temas socioambientais com foco na luta de preservação dos yanomami   Foto: Pedro J Márquez

Teve uma troca. Por exemplo, o lance de ter uma mulher contando uma história no filme. Nas primeiras reuniões, somente os homens participavam. E eu questionei se não podíamos ter mulheres, e eles disseram que as mulheres não participavam desse ambiente de decisões. Mas isso não me pareceu legal, porque algumas mulheres vinham me contar histórias durante o dia. E eu levei isso para o Davi, e disse que o mundo estava mudando. Conversamos muito e, no final, ele me liberou para filmar as histórias, principalmente da Ehuana.


A inspiração para o filme veio somente de A Queda do Céu [livro de Davi Kopenawa Yanomami, que inspira o longa], ou antes mesmo da leitura você já tinha planos de contar histórias similares, até mesmo com a própria comunidade?


Quando eu estava fazendo Ex-Pajé, que é um filme que mostra um ataque da igreja evangélica à uma comunidade indígena, eu achei que precisava fazer um filme que mostrasse o contrário: uma comunidade indígena na plenitude da resistência. Entre as possibilidades que eu tinha, eu li A Queda do Céu e achei que poderíamos contar essa história. Então, procurei o Davi, e ele se abriu e me fez o convite de visitá-los. O processo nasce no Ex-Pajé, mas tem influências do livro A Queda do Céu, que tem autoria do Davi. Foi um processo construído com o Davi, não é uma adaptação do livro.


O decreto presidencial que protege o território florestal completou 29 anos. Quais são os maiores desafios para a preservação desta e demais áreas contra a devastação e invasão de garimpeiros?


As leis existem e estão aí. O território yanomami é protegido. Não pode entrar nenhum branco lá sem autorização deles. Do ponto de vista legal, eles estão protegidos. O que eles não estão protegidos é contra um desgoverno, que não cumpre lei nem constituição. Também contra uma Polícia Federal e um Exército que deixam de cumprir suas funções constitucionais de defender o patrimônio do país para os brasileiros.


Aquela floresta em pé é necessária para que tenhamos água nas periferias do Brasil, para que tenha água para molhar soja, para o boi beber... É um interesse de todos que a floresta esteja de pé. No entanto, assim que o Bolsonaro ganhou as eleições, 20 mil garimpeiros entraram no território yanomami e passaram a destruir a floresta, e a Polícia Federal e as Forças Armadas, que agiam de forma exemplar para impedir a destruição, pararam de cumprir seu papel constitucional de defender o Brasil para os brasileiros. Estão fazendo um serviço sujo a mando de um presidente que não segue as leis do país. O cenário é problemático. O que a gente espera é que se cumpra a lei.


Como o cinema pode contribuir com a conscientização ambiental?


O cinema é muito importante porque leva informação, traz luz para onde há sombra, divulga e espalha pelo mundo essas informações. O filme já foi premiado na Coreia, na Alemanha, já passou na Itália, Nova Zelândia... Os yanomami estão sendo reconhecidos pelo mundo.


Precisamos agora de mobilização, porque desde que filmamos, eles não tiveram resultado. Precisamos do impacto para que a lei seja cumprida e os garimpeiros sejam retirados. E isso ainda não aconteceu. A cada semana, a situação é mais perigosa e mais grave. O sucesso do filme é inversamente proporcional ao que vem acontecendo com os yanomami hoje. Nós esperamos que o filme ajude a criar uma pressão da opinião pública, da mídia nacional e internacional contra o governo brasileiro. Quem sabe com a pressão por perder dinheiro, porque pode haver uma resistência ao comércio com o Brasil, pode ser que eles cumpram a lei e tirem os garimpeiros invasores do território yanomami.


Parabéns pela vitória em Berlim! Como foi a experiência no Festival?


A experiência do festival foi maravilhosa. O que faltou foi ver um monte de filme e trocar com os diretores. Esse ano foi diferente, não teve encontro, almoço, bate-papo de diretores... Era muito focado na exibição do filme. Mas, tivemos oportunidades de responder perguntas nas sessões, e ver o filme encantando a audiência alemã. Todos ficaram sentados até o final dos créditos. Era um estouro de aplausos, que culminou no prêmio do público. Foi ali que percebi que estávamos concorrendo. Foi uma reação maravilhosa. Acho que esse caminho internacional do filme está bem grande, e terá distribuição mundial. Acredito que isso pode ajudar na luta para a preservação da floresta e dos territórios indígenas.


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