Cem anos de pesadelo

O Gabinete do Dr. Caligari uma das obras máximas do expressionismo alemão, marca o início do cinema

Por: Eduardo Cavalcanti & Colaborador &  -  08/11/20  -  11:50
  Foto: Reprodução/Pixabay

No mundo hipertecnológico de 2020, poucas coisas podem parecer mais arcaicas do que o cinema mudo do início do século passado. Um filme sem cor, sem som, com interpretação exagerada e cenários que parecem saídos de um trabalho de escola sugere algo tão alienígena quanto um monólito num filme de Stanley Kubrick.


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Ao mesmo tempo, uma olhada atenta em alguns desses filmes revela bem mais que artefatos arqueológicos. O que se encontra neles é uma ousadia estética e conceitual que, raramente, se vê em qualquer gênero cinematográfico atual. Isso, quando não representam a própria gênese de um deles.


É o caso de ‘O Gabinete do Dr. Caligari’, uma produção alemã de 1920 que chega ao seu centenário com o status de ser a origem, de fato, do cinema de horror. As produções artesanais dos irmãos Lumière já continham elementos fantásticos e sobrenaturais, mas foi o longa-metragem do diretor Robert Wiene que deu forma definitiva ao medo nas telas.


Caligari já teria seu lugar assegurado na história, se fosse “apenas” um filme. Na prática, ele foi muito mais do que isso. Foi um dos mais notórios exemplares do expressionismo alemão, um movimento de vanguarda da arte moderna que nunca se esgotou. Ele continua a lançar suas sombras sobre a cultura contemporânea – e nesse caso, sombras são a expressão visual por excelência de qualquer obra do gênero.


Se o surrealismo tinha como projeto investigar o subconsciente, o expressionismo explorava o lado escuro da alma. Enquanto os surrealistas sonhavam, os expressionistas tinham pesadelos. O Gabinete do Dr. Caligari é algo ainda mais sinistro, a representação gráfica dos delírios de um louco que vê o diretor do hospital psiquiátrico como um psicopata, um assassino que usa um sonâmbulo como instrumento parar perpetrar seus crimes.


A história é contada do ponto de vista do próprio paciente, e as formas distorcidas do cenário refletem o estado mental do narrador. Cesare, a atração de freak show que mata sob as ordens de Caligari, tem a aparência aterradora que serviria como template para os mortos-vivos de George Romero e o monstro de Frankenstein de Boris Karloff.


O sentido altamente alegórico do filme deu margem a interpretações que iam muito além do que se via na tela. Dois importantes teóricos de cinema, Siegfried Kracauer e Lotte Eisner, apontaram como a história antecipava o modo como o nazismo, na figura de Caligari, teria controle sobre o sonâmbulo povo alemão, alguns anos depois. Os livros de Kracauer e Eisner – respectivamente, De Caligari a Hitler (1947) e A Tela Demoníaca (1952), ambos lançados no Brasil – se tornaram fundamentais para qualquer estudo sobre o expressionismo no cinema.


O movimento ainda iria gerar outros clássicos, como o Nosferatu (1922) de F.W. Murnau, e o Metropolis (1927) de Fritz Lang. O primeiro é o protótipo de todos os filmes de vampiro e o segundo, talvez a maior produção de ficção científica da história. Com a ascensão do regime nazista, diretores, roteiristas e técnicos, que estavam anos à frente de Hollywood, debandaram para os Estados Unidos, onde foram abraçados com entusiasmo. 


Não era para menos. Os exilados ampliaram ainda mais as bases do cinema de terror com os monstros do estúdio Universal, e desenvolveram a linguagem do que ficou conhecido como filme noir. Foi assim que a arte expressionista transformou os policiais B, produzidos às dúzias como meros caça-níqueis, em obras influentes, imitadas até hoje.


Caligari de Robert Wiene, com sua estrutura de narrativa em flashback, seu twist ending e sua composição visual baseada em luz (pouca), sombra (muita) e ângulos (impensáveis), foi e continua sendo, cem anos depois, uma referência obrigatória. Os sonhos, eventualmente, acabam. No gabinete do Dr. Caligari, os pesadelos duram muito mais.


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