'Bela Vingança' traz crítica assertiva ao machismo estrutural e cultura do estupro

Filme de Emerald Fennell levanta a questão do abuso com acidez em roteiro utópico de 'justiça' por vítimas

Por: Bia Viana  -  24/04/21  -  17:46
     A atriz Carey Mullighan no papel de Cassandra Thomas: a esperança e a impotência na medida certa
A atriz Carey Mullighan no papel de Cassandra Thomas: a esperança e a impotência na medida certa   Foto: Divulgação

Não é fácil assistir ou falar sobre Bela Vingança sendo mulher. E não é uma questão de ditar regras ou reações, mas uma observação pelo realismo do filme, que desperta nesse público sentimentos à flor da pele. Escrito e dirigido pela atriz, escritora e cineasta Emerald Fennell, que concorre ao prêmio de Melhor Direção em seu primeiro longa (e é a primeira mulher britânica indicada na categoria), o filme traz uma visão feminina necessária e extremamente crítica sobre questões sociais latentes, como estupro, assédio sexual, machismo e a estrutura patriarcal que favorece um ciclo vicioso de dor, medo e violência entre as mulheres.


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A trama gira em torno de Cassandra Thomas (Carey Mulligan), uma ‘justiceira’ que encontra predadores sexuais em casas noturnas e lhes dá uma lição. A motivação de Cassie é simples: sua melhor amiga desde a infância, Nina, foi vítima de violência sexual e ela se sente culpada pelo ocorrido. Esse evento traumático inspira a protagonista a vingar sua amiga, bem como outras vítimas do mesmo crime, derrotando abusadores em seu próprio jogo e garantindo que eles tenham o que merecem (o que na maioria delas, não acontece).


Não é uma história fácil de se conduzir, tanto pela seriedade que o tema pede como pela estrutura necessária para tornar a narrativa crível. Para resolver o problema, a estratégia de Fannell foi criar uma estética caricata e excêntrica, que encoraja uma narrativa sarcástica e ácida. A abordagem em questão torna a obra incômoda, revoltante e questionadora, fugindo do senso comum e conferindo uma assinatura única à obra.


Várias escolhas interessantes acendem esse senso crítico. O elenco, por exemplo, reúne atores conhecidos por papéis “do bem”: Adam Brody é o rosto de vários mocinhos e homens sensíveis, enquanto Christopher Mintz-Plasse, nosso eterno McLovin deSuperbad, costuma fazer o “bobo da corte” inocente, que não representa perigo para ninguém. Dessa forma, logo nos primeiros minutos, o filme já nos causa um estranhamento. Ao se utilizar muito bem da “reputação” desses atores, o filme subverte a própria narrativa hollywoodiana e as convenções sociais, nos provando que o mal não tem uma face definida e frequentemente encontramos lobos em pele de cordeiro. A própria Cassie, interpretada com elegância por Carey, traz uma profundidade enorme, ressaltada pela belíssima fotografia, figurino e montagem do filme.


Outro passo importante é o trato dos relacionamentos amorosos. Cassie tem dificuldade em se relacionar, o que percebemos tanto na reação dos pais com o fato dela ainda morar em casa, como em seu relacionamento com Ryan (Bo Bumham), que representa tanto o pior momento da vida de Cassie como uma chance de superação. A esperança motivada pelo amor, que é uma narrativa frequente nos filmes hollywoodianos, também é colocada em questão quando percebemos as implicações dessa relação na vida de Cassie, que acabam, de certa forma, contribuindo com o desfecho da personagem.


A impotência, que em um sentido remete à falta de poder do homem durante o ato sexual, cerca o filme como uma sombra às ações de Cassie, que tenta, de toda forma, honrar sua amiga, desafiando tudo pelo seu objetivo. Teóricos como Pierre Bourdieu, Betty Friedan e Michel Foucault falam sobre o sexo como uma estrutura de poder e dominação, que subtrai as mulheres em todos os segmentos. No filme, é possível observar essa cono-tação, que diz muito não só da cultura do estupro, como das grandes disparidades que ainda impedem as mulheres de terem total liberdade e respeito.


Bela Vingança não é só um filme utópico sobre uma vingadora de mulheres: é uma trama muito mais densa e profunda, que questiona as estruturas patriarcais e escancara as injustiças e violências que as mulheres sofrem diariamente. A ira despertada pela personagem é uma figura de linguagem para tantos anos de repressão, desprezo e descaso com tantas vítimas de violências de gênero vistas como “consequências” do descontrole de alguns meninos. Querem nos provar que os casos alarmantes de estupro, violência doméstica e feminicídio são normais, enquanto Emerald nos lembra o mantra entoado no movimento Vidas Negras Importam: vamos dizer seus nomes. Que esse grito de resistência ecoe, ao lado de tantos outros, por um basta na violência.


Confira as entrevistas de Paoula Abou-Jaoude, colaboradora de Los Angeles para A tribuna, com a cineasta Emerald Fennell e a protagonista Carey Mulligan.


 Emerald Fennell faz sua estreia na direção no comando criativo de 'Bela Vingança'
Emerald Fennell faz sua estreia na direção no comando criativo de 'Bela Vingança'   Foto: Reprodução/Twitter

“Dirigir é a melhor maneira de contar uma história”, diz Emerald Fennell


A conhecemos como atriz e escritora, e agora você também virou cineasta. Isso esteve sempre nos seus planos?


Sempre quis dirigir e minha trajetória tornou isso possível. Trabalhar com gente talentosa, ver como executa seu ofício foi transformador. Aprendi muito nos sets de filmagens. Dirigir é a melhor maneira de contar uma história, especialmente se for algo que você mesmo escreveu. Por ser uma história feminina, tudo pareceu se encaixar.


Como foi escrever uma história tão complexa?


Eu estava interessada no tema da raiva feminina, principalmente como a vingança se manifesta, algo que raramente vemos. A gente costuma ver mulheres fazendo algo catártico e maravilhoso, mas tudo parece como a visão masculina de vingança, e não com uma ótica feminina. Estruturalmente, isso foi uma coisa que me interessou. Mas eu também cresci num mundo em que o comportamento mostrado nesse filme era completamente normal e aceitável. Isso era uma brincadeira, uma piada, um joguinho, e para muitas pessoas, ainda é.


O filme mostra como uma experiência traumática pode influenciar a vida de uma pessoa. Você acha que seu trabalho pode criar uma discussão sobre o assunto?


Espero que sim. Sempre quis fazer um filme que interrogasse o trauma que a cultura da sedução cria e que ele parecesse honesto. Isso é encorajado. Está em certos filmes em que a pessoa é motivo de piada, e isso é aceito e incentivado entre os jovens. O que acontece quando a gente descobre que aquilo não era só horrível, mas incorreto e que pode ter consequências devastadoras? Para mim, o filme é sobre pessoas que passam a entender que fizeram ou podem fazer coisas ruins. É também sobre como você pode obter o perdão e a redenção. Não tenho resposta a essas perguntas, mas espero que estejam na discussão entre depois que assistirem ao filme.


Como foi trabalhar com Carey Mulligan?


Carey é uma das grandes atrizes. É incrivelmente inteligente e o único desejo dela é ser honesta na atuação. Ela não estava interessada em fazer a personagem sexy, nem eu queria isso. Queríamos construir uma personagem que soasse real e ela interpreta Cassie de uma maneira verdadeira. Carey é sempre genuína. Além disso, é uma pessoa bem divertida, no set, todos a adoram. E quando se começa a filmar, ela é diferente de tudo que ja vi antes, a transformação na personagem é fascinante.


 Carey Mulligan interpreta Cassandra Thomas, protagonista de 'Bela Vingança'
Carey Mulligan interpreta Cassandra Thomas, protagonista de 'Bela Vingança'   Foto: Reprodução/Twitter

“Ela está fazendo isso por amor à amiga”, comenta Carey Mulligan


Como você abordou a jornada de Cassie?


Tive conversas com Emerald sobre como Cassie era antes desse evento acontecer. Como era o comportamento dela, seu modus operandi de sair na balada, fingir embriaguez e tentar ensinar uma lição a esses homens, à sua maneira. Discutimos muito a amizade e o relacionamento com Nina – acho que essa é a verdadeira jornada de Cassie. Não me ajudaria pensar na história como vingança, mas um ato de lealdade: ela está fazendo isso por amor à amiga. Cassie jamais pensaria em ter um rumo malicioso, ela faz aquilo pois acredita que as coisas estão erradas e quer que sejam corrigidas.


Mas você consegue enxergar atos de vingança no comportamento dela?


Acho que o trauma pessoal dela é a raiva, um ressentimento grande que foi tomando conta. Trata-se de um evento de 10 anos antes. Aquela raiva profunda foi calcificada. O resultado das ações dela é um momento gratificante, que acalma a dor e a faz se sentir melhor consigo, mas a intensidade daquela sensação diminuiu, e ela teve que repetir para sentir-se bem como antes. Isso se resulta num comportamento do qual não consegue mais escapar.


Como vocês tentaram encontrar um balanço entre as cenas pesadas com as mais cômicas?


Esse foi um dos motivos pelos quais a personagem se tornou complicada de fazer. Ela tem muitas variações rápidas, tipo passar de um estado completo de embriaguez para um lado sóbrio, frio e calculista. Eu acho que somente Emerald podia dirigir o filme, pois tudo estava na cabeça dela e ela sabia o que queria. Eu nunca li nada parecido que descrevia e lidava com o assunto daquela maneira. Foi completamente novo e animador para mim.


Por Cassie ser uma personagem tão complexa e trágica, foi difícil se desligar dela enquanto não estava no set?


De certa forma, sim. Mas quando você tem uma família esperando em casa no fim do dia, você tem que se desvencilhar do comportamento depressivo e cheio de ressentimentos, pois ninguém da sua família vai tolerar isso. Por esse motivo, eu estava protegida. Mas eu me peguei comprando um monte de roupas cor-de-rosa enquanto filmávamos, o que é bem estranho, pois normalmente eu só uso preto (risos). E eu entrei nas filmagens odiando ter unhas longas e saí delas adorando, obcecada pela minha manicure. Foi triste quando as filmagens acabaram e não tinha mais a manicure (risos).


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