O fantástico teatro das sombras

Nos bastidores, antes de começar, observava o vaivém de atores e equipe arrumando roupas, sapatos, objetos

Por: Matheus Tagé  -  16/08/21  -  07:54
  Foto: Matheus Tagé/AT

Em meio à escuridão, uma silhueta, contornada por um suave feixe de luz, dedilhava a canção Desperado – de 1973, da banda americana Eagles – em um piano solitário, que reverberava por todo o salão teatral, naquele início da noite de sexta-feira. Eu estava incumbido de fotografar o ensaio de uma peça e aguardava o início. Nos bastidores, antes de começar, observava o vaivém de atores e equipe arrumando roupas, sapatos, objetos, acertando marcações no chão, e fazendo uma última revisão do roteiro, para bater o texto.


Clique e Assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe acesso completo ao Portal e dezenas de descontos em lojas, restaurantes e serviços!


Durante os preparativos, pedi à produção que me indicasse de onde poderia fotografar, de modo que não atrapalhasse o ensaio. Me aconselharam a subir um lance de escadas até um pequeno mezzanino, de onde poderia enquadrar a movimentação. Ali permaneci sozinho até que as últimas luzes se apagaram completamente. O diretor fez algumas breves explanações ao elenco e deu início ao ensaio. Na primeira cena, o chão – antes quadriculado, como um tabuleiro de xadrez – se tornou vermelho sangue, por conta de uma lona rapidamente esticada. Surge a primeira personagem: uma mulher vestida de noiva, morta, esticada no chão. Em torno dela, pessoas passam lamentando, chorando e desaparecem na escuridão.


Faço alguns cliques, debruçado no estreito parapeito, quando ouço uma voz: “Cuidado para não cair”. Tomo um baita susto. Não sabia que havia alguém ali. A voz era de algum ator que surgiu abruptamente, de modo que mal conseguia enxergar seu rosto, encoberto pela nebulosa escuridão do local. Após fazer mais algumas fotografias, resolvo descer. As pessoas da equipe, com quem falei antes, estavam metamorfoseadas em personagens ficcionais. No chão, ninguém mais me conhecia, nem me via. Me torno imperceptível, diante da concentração dos atores. Dou a volta pelo corredor externo, para me posicionar na altura do diretor, para que o ensaio ocorresse bem na minha frente. Era uma história não-linear, pelo fato de que a noiva morta agora estava viva, encenando os acontecimentos que levaram à tragédia.


A expressão triste da personagem se intensifica à medida que observo os outros. O pai, a mãe, o noivo, e a mãe do noivo. Todos excentricamente ambiciosos, pareciam querer o casamento a qualquer custo. Um garçom narrador acende uma luminária, que lhe confere um ar sinistro – e sábio, ao mesmo tempo – e fala, como se prenunciasse o desfecho da moça. Faço alguns cliques com flash para tentar iluminar o que não vejo. Me ocorreu que poderia estar incomodando com os estouros de luz, quando, de repente, um som atordoante de uma serra-elétrica irrompe ao fundo da encenação. Não sei se foi coincidência, mas resolvo usar a luz natural, por via das dúvidas. O homem com a ferramenta – assustadoramente barulhenta – parecia apaixonado pela protagonista e tentava convencê-la a não se casar. Um enredo que parece uma releitura de Federico García Lorca. O clima vai ficando cada vez mais insólito e depressivo pela pressão das famílias e o dilema da protagonista.


Quando censuro o flash, me forço a captar o que vejo – quase nada. Os personagens começam a dançar como vultos na profunda obscuridade. Uma atmosfera um tanto mágica toma conta. Eu sinto como se estivesse em uma realidade aumentada, uma experiência virtual, como se as figuras fantasmáticas traçadas na escuridão passassem de um lado para outro, enquanto a narrativa acontece à minha volta. Em contraponto ao cinema, dou conta de que a experiência do teatro depende da presença física – do jogo corporal. Aqui não há enquadramento ou montagem. Mas existe uma ambiência, que nos induz a sentir a carga dramática das cenas.


Os primeiros cinemas também eram como teatros filmados. Vejamos o clássico de George Méliès, Le voyage dans la Lune (1902): uma épica ficção espacial em que a ação ocorre dentro do enquadramento estático da câmera, como se fosse um palco. L'Arroseur arrosé, de 1895, dos irmãos Lumiére, revela um mesmo cuidado dos personagens – o menino e o jardineiro – com os limites da composição fotográfica fixa. O ensaio sombrio que presenciava parecia mais como uma imersão no mundo ficcional. Uma vez que não havia um palco definido, a narrativa fluía, transpassando todos os espaços.


O passar das horas me obriga a ir embora. Vou andando angustiado, sem saber o que teria acontecido de tão trágico para a morte da personagem, ou sem saber quem a causou. Agradeço ao produtor que me acompanha até a porta e aviso em tom de brincadeira que tomei um susto no mezzanino quando um dos atores me avisou para não me apoiar no parapeito. Ele sorri e me fala que nenhum ator teria subido no meio do ensaio. Deve ser coisa da minha imaginação. Boa semana!


Logo A Tribuna