Melhore a sua relação com a comida

Tudo bem abusar uma vez ou outra, mas aprenda a diferenciar fome de saciedade

Por: Cláudia Duarte Cunha  -  08/05/22  -  19:33
“Chutar o balde quando estamos em uma festa e comemos um pouco a mais é completamente normal
“Chutar o balde quando estamos em uma festa e comemos um pouco a mais é completamente normal   Foto: Adobe Stock

Os alimentos podem ter um peso muito maior na nossa vida do que aquele revelado na balança. Quem explica detalhadamente essa relação é a psicóloga Leticia Veiga Berlim, que atua em Santos e é pós-graduada em Psicanálise e Saúde pelo Hospital Albert Einstein, de São Paulo, e em Comportamento Alimentar pelo Instituto de Pesquisas, Ensino e Gestão em Saúde, de Porto Alegre (IPGS).


Muita gente não consegue emagrecer por conta da relação que mantém com a comida?
Nossa relação com a comida acontece desde a gestação. No início da vida, somos 100% dependentes do meio externo e precisamos do outro para sobreviver. Já quando chegamos à fase adulta, passamos a ser totalmente responsáveis por nosso comportamento e nossas escolhas. Muitas pessoas podem ter uma relação disfuncional com a comida e até traumática, devido à maneira como os alimentos foram introduzidos e até pelo ambiente familiar. O nosso comportamento alimentar também envolve aspectos subjetivos, como os psicológicos e os de cunho sociocultural.


E isso pode ser mudado?
Sim, por ser um comportamento aprendido, nós podemos modificá-lo. O acompanhamento com psicólogo e nutricionista, especializados em comportamento alimentar, é essencial no processo.


Como aprender a comer mais por necessidade do que gula?
Temos de diferenciar fome de saciedade. A fome é um sinal biológico que alerta quando você precisa abastecer sua energia. Quando temos fome, sentimos um incômodo, assim como quando precisamos beber, dormir ou ir ao banheiro. O bebê chora quando sente a sensação de fome e para de amamentar assim que está satisfeito. Infelizmente, temos uma tendência a perder isso ao longo da vida, especialmente quando nos submetemos a dietas e restrições; vamos parando de escutar os sinais do corpo.


Comer muito rápido pode mascarar a sensação de saciedade e fazer com que a gente se alimente mais do que devia?
Quando comemos muito rápido, não prestamos atenção nos alimentos e na quantidade que ingerimos. Dessa forma, fica muito difícil reconhecer quando realmente estamos saciados. É fundamental comer de forma consciente, prestando atenção em cada alimento. Comer no piloto automático faz com que a gente coma a mais.


Como controlar os excessos, impulsos e a compulsão por doce?
Primeiro, é preciso entender que não existe alimento bom ou ruim. A forma como nos relacionamos com a comida é que faz a diferença. Nos alimentamos por muitas razões: culturais, sociais e, evidentemente, para nutrir o corpo. Também comemos por memórias afetivas e até para nos dar recompensas e prazer. Em alguns momentos, é normal exagerar, repetir a pizza ou o doce. E isso não significa compulsão. O problema é quando esses episódios, que deveriam acontecer em situações específicas, passam a ser frequentes, trazendo prejuízos à saúde.


Então, proibir alimentos acaba provocando um efeito inverso?
A mentalidade da dieta, de dividir os alimentos em proibidos e permitidos, além das regras alimentares muito rígidas, são fatores que assustam o cérebro e desencadeiam gatilhos para comer de maneira exagerada, podendo até evoluir para um episódio compulsivo. A pessoa pode desenvolver o transtorno de compulsão alimentar (TCA). Quanto mais liberdade temos para fazer nossas escolhas alimentares, mais temos consciência do que precisamos. Lembrando que liberdade não é comer tudo que se quer a qualquer hora, mas fazer as melhores escolhas.


Alguns alimentos podem viciar?
Não há nenhuma evidência que comprove o vício em comida. O vício induz alterações no corpo, que são como uma defesa do organismo contra uma substância estranha, e isso gera um mecanismo de adaptação ou tolerância. Na falta dessa substância, vamos ter o funcionamento do corpo comprometido e é nesse momento que entra o estado de abstinência. Isso não acontece com a comida, com a compulsão alimentar. Muitas pessoas falam que o açúcar gera vício, mas ele não é uma substância estranha para o corpo, como a droga. O que se pode dizer é que há alimentos hiperpalatáveis, como gordura, sódio (sal), açúcar e carboidratos, o que os torna mais saborosos e desejados.


Como separar as nossas emoções da nossa alimentação?
O problema é comer mais por razões emocionais do que físicas. É importante reconhecer e nomear nossas emoções e sentimentos, além de compreender que eles vão nos impulsionar para agir em determinadas direções. É preciso acolher essas sensações e não fingir que nada está acontecendo. Precisamos cada vez mais nos fortalecer para ter um comportamento alimentar funcional.


+ Dicas
Encontros sociais

Entenda que a comida é só uma das fontes de prazer. Por mais que, nos encontros sociais, ela tenha grande ênfase, não é algo exclusivo. “Existe a fome social. Você pode até não estar com fome, mas vai acabar comendo, porque é instintivo. O ser humano sempre celebrou em torno da comida e, nessas horas, é normal exagerar. As pessoas compartilham alimentos, conversam e se divertem. Aceitar isso é essencial para relaxar e deixar de se preocupar tanto com os encontros sociais. Quanto mais noção temos das necessidades do corpo e do que faz bem, menos chances há de extrapolarmos. Quando entendemos que os encontros sociais são situações específicas, ficamos mais em paz”, diz Leticia Berlim.


Gatilhos da compulsão
Nada acontece de forma isolada. São vários fatores que influenciam esse processo. Um dos gatilhos mais comuns é a realização de dieta restritiva. “Lembrando que isso não ocorre com todo mundo, mas nota-se esse movimento de modo elevado, já que a pessoa não consegue sustentar tal comportamento alimentar por muito tempo. E, depois de um período de restrição, pode haver outro de exagero. É essencial analisar cada situação”.


Culpa pelos excessos
Muitas pessoas acham que comer de forma saudável é ficar 100% “limpo”, ou seja, não comer pizza, salgadinho e levar marmita de frango com batata-doce até em festas. Na verdade, esses hábitos dificultam e nos distanciam de um comportamento alimentar saudável. “Comer é o que nos dá equilíbrio, energia e uma fonte de prazer. Quando passa a ser fonte de sofrimento, a nossa relação com a comida fica disfuncional. Algumas pessoas precisam fazer dieta por questão de saúde, sim. Mas, no geral, para minimizar a culpa pelo excesso de alimentos ‘não saudáveis’, basta entender que estamos comendo por razões físicas ou emocionais e quais crenças estão atreladas à comida. Gosto da definição do que é comer normal da nutricionista Ellyn Satter: comer até que você sentir-se saciado. Precisamos nos permitir a comer em certos momentos, porque estamos felizes, tristes ou para nos sentirmos melhor. Devemos confiar no corpo para reparar eventuais deslizes”.


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