Bráulio Mantovani fala dos 20 anos do filme Cidade de Deus e do reflexo dos streamings no mercado

O roteirista foi indicado ao Oscar pelo trabalho no longa-metragem

Por: Stevens Standke  -  10/07/22  -  07:50
Bráulio:
Bráulio:   Foto: Divulgação

O filme Cidade de Deus (2002) foi um divisor de águas na carreira de Bráulio Mantovani, pois, além de render uma indicação ao Oscar de Melhor Roteiro, trouxe o “privilégio” de poder escolher os projetos em que iria trabalhar dali em diante. E esse foi apenas um dos vários pontos altos de sua bem-sucedida trajetória, que inclui trabalhos na Rede Globo e os longas Tropa de Elite 1 e 2. “Sou casado há 16 anos com a Carolina Kotscho, que também é roteirista. Escrevemos juntos para a Globo a série A Teia, com Paulo Vilhena, Andréia Horta e Julio Andrade no elenco”, comenta o paulistano de 58 anos, que acrescenta: “Tenho um vínculo com Santos. Colaborei com o filme Querô (rodado pelo Instituto Querô, ONG da Cidade). Sem contar que sou amigo do José Roberto Torero (jornalista e escritor santista)”. Na entrevista, Bráulio, que participou recentemente da oitava edição do Santos Film Fest – Festival de Cinema de Santos, fala, entre outros assuntos, do período em que morou nos Estados Unidos e das experiências que teve como ator e jornalista.


O Cidade de Deus fez 20 anos e a data inspirou homenagem no Santos Film Fest. O que isso significa para você?


É muito bacana saber que o filme resiste aos anos. Quando eu e o (diretor) Fernando Meirelles estávamos fazendo o Cidade de Deus, não tínhamos ideia de que se tornaria um marco no cinema brasileiro e que teria repercussão internacional. Recentemente, me reuni com jovem produtor-executivo de Los Angeles (EUA) e me surpreendi quando começou a elogiar o Cidade de Deus, dizendo o quanto o filme foi importante para ele. Lembro que, curiosamente, quando o Cidade de Deus ficou pronto, falei para o Fernando: “Acho que você ganharia o Oscar com esse filme. Pena que ninguém vai ver”.


O Tropa de Elite também repercutiu muito fora do País.


Mas não como o Cidade de Deus. Aliás, me considero mais autor do Tropa de Elite 2, pois, quando entrei na equipe do primeiro filme, o Zé (José Padilha, diretor) já tinha escrito umas cinco versões do roteiro. A princípio, eu mais colaborei. No segundo filme, foi diferente, eu e o Zé criamos tudo juntos. Só que, na minha história pessoal, o Cidade de Deus tem mais impacto do que qualquer outra coisa. Foi o primeiro longa que escrevi profissionalmente, e tive liberdade criativa como jamais vi igual.


O que o inspira?


Antes de escrever para o cinema, fiz por muitos anos roteiros para programas de TV educativa. E eu amava isso. Aí, com o sucesso do Cidade de Deus e a indicação ao Oscar, passei a ter a sorte, o privilégio de quase sempre poder escolher os projetos que vou fazer. Geralmente, o meu processo criativo não é muito racional. Fico sem saber explicar por que os personagens e as histórias mexem comigo. Só costumo entender o motivo de estar escrevendo um filme quando estou avançado no roteiro. O que reparei é que acabo me interessando por temas e personagens que não têm a ver comigo. Também pesa bastante o nível de afinidade que tenho com o diretor de cada projeto.


Tem estreitado a relação com o mercado internacional?


Um agente de fora do Brasil me procurou na época do Cidade de Deus e começaram a aparecer trabalhos nos EUA. Fiquei fazendo projetos aqui e lá por um tempo, dei uma parada apenas no período em que trabalhei na Globo, devido ao contrato de exclusividade. Recentemente, voltei a receber convites internacionais. E montei uma produtora nos EUA, com sócios brasileiros e americanos. Estamos desenvolvendo projetos lá.


Os streamings impulsionaram o mercado audiovisual?


Com essas plataformas, o mercado está cada vez mais internacionalizado. Hoje, do mesmo modo como vemos séries do mundo todo, os nossos seriados também são assistidos em outros países. Isso leva produtores estrangeiros a se interessarem cada vez mais por fazer coisas aqui e com os profissionais brasileiros.


Acha que, com o tempo, a realidade do cinema nacional evoluiu até que ponto?


Comecei a trabalhar como roteirista nos anos 80, época em que parecia uma utopia sobreviver escrevendo para o cinema. Havia poucos profissionais. Hoje, já são centenas. Apenas chegamos a essa quantidade porque existe mercado de trabalho para todo mundo. Mesmo com a destruição do audiovisual no atual governo, tem muita gente produzindo, ainda mais com os streamings. Vivemos uma realidade com a qual eu jamais sonharia lá atrás. Também é fato que a qualidade do cinema, do audiovisual brasileiro aumentou, mas sempre terá algo para a gente melhorar. Vou dar um exemplo: o roteirista sempre precisa brigar para ter contrato digno com as plataformas de streaming, porque, num primeiro momento, querem todas as garantias só para elas.


O que despertou a vontade de ser roteirista?


Comecei a fazer teatro no colégio, onde me formei eletrotécnico, porque sou filho de metalúrgico. Crescei na periferia de São Paulo, perto da favela de Heliópolis. Com 13 anos, já dizia que queria ser escritor, mas a família não aceitava muito a ideia. Como desde criança me interesso por literatura e arte em geral, um dia fui ver a apresentação de um amigo que fazia teatro de rua. Acabei entrando para o grupo, como ator, o que curou a minha timidez. Dos 17 aos 25 anos, fiz teatro amador e universitário. Foi assim que me interessei por cinema. Cheguei a ser cineclubista, inclusive na PUC (Pontifícia Universidade Católica), quando cursei Letras.


E como foi para o cinema?


No segundo ano da faculdade, aprendi a fazer câmera e luz com o marido de uma amiga que era diretor de cinema. Depois, trabalhei como jornalista na Folha de S.Paulo e tive a chance de entrevistar o (autor e diretor de teatro) Gerald Thomas. Fui acompanhar a montagem de uma peça dele em Nova Iorque (EUA), só que o espetáculo não aconteceu. Fiquei morando um tempo na cidade. Lá, tive a oportunidade de trabalhar com um diretor de cinema polonês. Fui assistente de produção, de câmera e de direção, e entendi que não sirvo para trabalhar em set. Vi que o que queria mesmo era ser roteirista. Já escrevi até algumas peças.


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