Entrevista: Samuel Bortolin tem paralisia cerebral e faz triatlo e meia-maratona

Paratleta concilia o esporte com a realização de palestras e a educação do filho

Por: Stevens Standke  -  25/04/21  -  15:21
  Samuel e o irmão gêmeo, Felipe, nasceram prematuros de seis meses e meio
Samuel e o irmão gêmeo, Felipe, nasceram prematuros de seis meses e meio   Foto: Arquivo Pessoal

Baiano arretado, Samuel Bortolin mostra a sua garra desde que nasceu, prematuro, e perdeu o irmão gêmeo. Perto de completar 1 ano de vida, veio o diagnóstico de paralisia cerebral, acompanhado de projeções nada otimistas. Segundo os médicos, havia chances de ele não falar e nem engatinhar. Nessa hora, seus pais, além de viajar o País em busca de opções de tratamento, se tornaram a sua grande fonte de motivação. Após se submeter a uma cirurgia, Samuel conseguiu andar sozinho pela primeira vez, aos 7 anos. Aí, veio a adolescência, um período de rebeldia e o paratleta e palestrante se viu na cama, mais uma vez sem conseguir andar. Foi hora de recomeçar. Aos 17 anos, já com seu quadro novamente estabilizado, Samuel foi morar sozinho no interior de São Paulo, onde cursou Direito, Educação Física e começou a correr. Depois de disputar sua primeira meia-maratona (prova de 21 Km), decidiu se aventurar no triatlo, e isso abriu as portas para que passasse a fazer palestras baseadas nas suas experiências de vida. Nesse meio tempo, também casou e se tornou pai do pequeno Felipe, de 2 anos e 10 meses. Na entrevista a seguir, Samuel emociona e motiva ao detalhar a sua vitoriosa trajetória.


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Diagnóstico


O que foi fundamental para superar as limitações impostas pela paralisia cerebral?


Me superei pela necessidade principalmente de sobreviver. Eu e meu irmão gêmeo, Felipe, nascemos em 1988, prematuros de seis meses e meio. No terceiro dia após o parto, o Felipe morreu. E como minha cidade natal, Barreiras, no interior da Bahia, na época carecia de uma estrutura médica, fui transferido para uma UTI de Goiânia (Goiás), onde permaneci por semanas, até recuperar peso e altura. O tempo passou e, quando completei 8, 9 meses, minha mãe, que estava com 21 anos, começou a perceber que eu não havia me desenvolvido como as crianças da mesma faixa etária. Eu não tinha coordenação, quase não me movimentava e era mais mole. A minha mãe, então, procurou os médios locais, mas eles disseram para esperar que eu crescesse um pouco mais. Não satisfeita com isso, ela viajou para várias capitais, atrás de uma avaliação clínica. Foi aí que veio o diagnóstico de paralisia cerebral.


Qual tratamento foi indicado para o seu caso?


Eu precisava de fisioterapia. Hoje, Barreiras conta com uma rede de saúde boa, mas, no período, a situação da cidade era precária. O centro de reabilitação mais próximo ficava a 800 Km dali, em Brasília. Minha mãe encarou mesmo assim. A cada 30, 40 dias, ela passava uma semana comigo no Hospital Sarah Kubitschek, para os tratamentos. A paralisia cerebral possui alguns graus. Eu tenho a chamada espasticidade, de grave para moderada. O que significa isso? É uma contração involuntária do músculo; se eu não me alongar e não tiver estímulos diários, o meu músculo vai se contraindo e encurtando, até perder a mobilidade. Basicamente, se eu ficar parado, sem fazer nada, pioro.


E como sua mãe lidou com essas suas necessidades, já que vocês só iam para Brasília uma vez por mês?


Uma fisioterapeuta do Sarah Kubitschek foi nosso anjo. Ela ensinou para minha mãe o que devia ser feito diariamente. Desse modo, fui crescendo e me desenvolvendo. Só que chegou uma hora em que precisei de equipamentos. Essa foi outra necessidade que tivemos de enfrentar, porque não havia muita coisa pronta para pessoas com deficiência naquela época. O andador que usei até os 7 anos, por exemplo, foi montado pelo meu pai. Ele o ajustou e refez várias vezes até chegar ao ponto ideal. Todas as dificuldades pelas quais passamos levaram minha família e principalmente eu a ter uma visão diferente do fracasso.


Em que sentido?


Para muita gente, o fracasso desestimula, faz com que as pessoas desistam do que estão tentando realizar. Como eu e minha família não tínhamos opção, tentávamos até dar certo. O meu pai me ensinou que o problema não é fracassar e, sim, desistir de algo. Só me tornei quem eu sou hoje por causa dos meus pais, da mentalidade que eles me ensinaram a ter.


Cirurgia


O que os médicos diziam sobre a possibilidade de você conseguir andar?


Os diagnósticos sempre foram ruins: que eu não iria engatinhar, nem andar; que poderia não falar e que teria expectativa de vida de 30 anos. Estou com 32; comecei a falar com 4 anos – mal, quase ninguém me entendia. E realmente não engatinhei, mas minha mãe não parou de me estimular. Passei a dar uma resposta mais significativa ao tratamento a partir dos 5 anos.


Você chegou a fazer algum tipo de cirurgia?


Sim. Até os 7 anos, eu não conseguia ficar em pé sem apoio por mais de 40 segundos. Minha mãe começou a consultar vários médicos novamente, para saber se havia algo que pudesse me tirar do andador. O primeiro médico disse: “Você é jovem, bonita. Não perca seu tempo com uma vida que não vai dar frutos”. Lembro da reação da minha mãe, quando saiu daquele consultório, com os olhos cheios d’água (Samuel fica emocionado). Ela falou para mim: “Filho, eu nunca vou desistir de você”. Isso me dava forças. Meus pais eram as minhas principais referências. Enquanto eles acreditassem que era possível, eu também acreditaria. Depois de sete médicos dizerem que não havia o que fazer, o oitavo falou que talvez tivesse algo que poderia dar resultado, mas que não havia garantia de nada. Tratava-se de uma cirurgia que estava sendo realizada fora do Brasil. A gente topou arriscar.


Em que consistia o procedimento?


Eu tenho triplegia, ou seja, as minhas pernas e o meu braço esquerdo foram afetados pela paralisia, apenas o braço direito que não teve nada. As minhas duas pernas eram para dentro e o tendão de Aquiles, muito encurtado. Na cirurgia, foi feita uma rotação de quadril e o alongamento do tendão. Fiquei um ano sem ir para a escola, por causa do processo de reabilitação após o procedimento. Essa recuperação foi realizada em Barreiras, pois, no período, a rede de saúde da cidade já havia melhorado. Eu tinha 7 anos quando consegui dar os primeiros passos sozinho, sem me apoiar em nada. Lembro que, antes disso, na carta que escrevia para o Papai Noel, eu pedia que ele me fizesse andar. Até hoje, quando acordo, sempre agradeço por poder andar. Geralmente levanto por volta das cinco da manhã para correr, e penso: “Não existe motivo para sentir preguiça, porque posso andar”.


Rebeldia


Como foi a sua adolescência?


Os meus pais nunca me esconderam em casa. Por isso, me tornei uma pessoa sociável. Tive uma infância muito boa, com vários amigos. Só que a adolescência foi a fase mais difícil da minha vida. Nessa época, a deficiência passou a ser a minha muleta, a minha desculpa para tudo o que dava errado na minha vida. Tive um período de rebeldia e vitimização aos 16 anos. Parei de fazer a fisioterapia e de fornecer o estímulo diário que o meu corpo precisa. Após seis meses, não conseguia mais andar, fiquei dias na cama e tive de tomar injeções para o meu quadro melhorar. A minha mãe chorava todos os dias. O meu pai vivia triste. Resolvi retomar o tratamento não por amor próprio. Afinal, eu não gostava de mim mesmo naquele momento. Decidi mudar devido ao amor e à gratidão que tenho pelos meus pais.


  Foto: Arquivo Pessoal

Esporte


Demorou para estabilizar novamente o seu quadro?


Fui fazendo tudo bem devagar, com calma. A cada dia, me desafiava um pouquinho mais. Aos 17 anos, disse para os meus pais que queria estudar fora. E fui morar sozinho em Fernandópolis, no interior de São Paulo. Cursei Direito e Educação Física, mas, para conseguir um estágio, me mudei para uma cidade maior, São José do Rio Preto, onde moro até hoje. Incentivado por um personal trainer, resolvi que ia começar a correr. No início, eu fazia dez metros, e fui aumentando até chegar a 21 Km. Levei cinco anos, treinando quase que diariamente, para conseguir isso. Hoje, ainda caio correndo, só que é bem menos do que no começo de tudo. A gente tem que vencer a si mesmo diariamente.


Foi aí que passou a participar de provas de corrida?


Sim, a princípio de 5 Km. Depois, de 10, 15 e 21 Km. Em 2016, decidi que ia fazer algo diferente, pois gosto do desafio contínuo, e passei a me preparar para o meu primeiro triatlo. Montei aos poucos uma equipe multidisciplinar de suporte. Como eu não tinha dinheiro suficiente, o professor de natação, por exemplo, cobrava um valor irrisório pelas aulas. Eu tinha 27 anos quando completei o meu primeiro triatlo. A última prova de que participei foi uma semana antes de a pandemia ser decretada.


Família


Você tem irmãos?


Tenho dois irmãos gêmeos, que são mais novos do que eu e me ajudaram bastante. Hoje, estou casado e sou pai de um menino de 2 anos e 10 meses. Conheci a minha mulher, a Carol, na época da faculdade de Educação Física. Ela é irmã de um amigo do curso; começamos a namorar em fevereiro de 2015 e, seis meses depois, estávamos morando juntos. Quando soubemos que íamos ter um menino, a Carol disse que o nome deveria ser Felipe, em homenagem ao meu irmão gêmeo que morreu.


E como surgiu a oportunidade para começar a ministrar palestras?


Durante a faculdade, fui convidado para falar com turmas dos cursos de Psicologia e Fisioterapia sobre as minhas experiências de vida. Aos poucos, entendi que poderia investir no mercado de palestras, que existia um potencial a ser explorado ali e que, se quisesse trabalhar nesse segmento, deveria me capacitar adequadamente. Foi o que fiz. Tudo aconteceu, de fato, a partir do momento em que iniciei no triatlo, pois isso trouxe uma grande demanda, bastante projeção e diversos convites para falar em empresas etc. Hoje, a Carol, que é publicitária, trabalha junto comigo; ela cuida do meu marketing digital e das minhas redes sociais. As palestras se tornaram o ganha pão da minha família. Ainda montei um curso on-line com a minha mãe e a Carol, chamado Criando Vencedores.


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