Nunca conheci quem tivesse levado porrada na vida, pelo menos nas redes sociais

Vivemos um tempo chamado pós-modernidade que traz, entre outros desafios, a oportunidade de contemplar duas realidades

Por: Paulo de Jesus  -  04/06/22  -  06:53
Não seria exagero dizer que os aparelhos eletrônicos que permitem o acesso às mídias sociais estão conectados diretamente às pessoas em tempo integral
Não seria exagero dizer que os aparelhos eletrônicos que permitem o acesso às mídias sociais estão conectados diretamente às pessoas em tempo integral   Foto: Gilles Lambert/Unsplash

Vivemos hoje um tempo chamado pós-modernidade que traz, entre outros tantos desafios, a oportunidade de contemplar duas realidades: a primeira, a vida real que todos conhecemos, com os seus amores, dores, desafios e conflitos inerentes à condição humana; e a segunda, objeto dessa singela coluna, experimentamos todos os dias as suas benesses, bem como seus contratempos e dissabores que advêm das redes sociais. Não seria exagero dizer que os aparelhos eletrônicos que permitem o acesso às mídias sociais estão conectados diretamente às pessoas em tempo integral.


Clique, assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe centenas de benefícios!


Por se tratar de um fenômeno relativamente novo, principalmente se levarmos em conta uma perspectiva histórica, não sabemos ao certo quais serão os efeitos dessa relação tão intensa e, por vezes, nociva no tocante a esses aplicativos. Mal conseguimos nos desligar, seja profissionalmente, como também para entretenimento. Quantas vezes nos vemos fazendo uma refeição e todos à mesa utilizando seus aparelhos celulares? Essas oportunidades de troca, diálogo e aprendizado são muito valiosas para serem desperdiçadas da maneira que vem sendo feita por todos nós.


Mais grave do que a desconstrução do diálogo mencionada acima é, muitas vezes, o conteúdo explorado nesses ambientes. Essas plataformas incentivam a comparação, seja ela no tocante à aparência, condição financeira, “status” no qual a pessoa insinua estar inserida, entre outras tantas deturpações que afligem severamente a psique de seus usuários, podendo causar sequelas graves. Esses espaços passaram a servir como propagadores de vidas perfeitas, nas quais a felicidade é o único sentimento possível.


Essa situação tão peculiar nos reporta ao trabalho de vanguarda do poeta Fernando Pessoa chamado “Poema em linha reta”, assinado pelo seu heterônimo Álvaro de Campos e escrita entre 1914 e 1935. Nesta esplêndida obra literária ele descreve sobre o tédio e o desânimo experimentado no relacionamento com as pessoas, que mentem para si e para os outros para serem admiradas. Não poderia ser mais atual! Em um dos meus trechos preferidos ele aponta: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada/Todos os meus amigos têm sido campeões em tudo”; e mais adiante: “Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas/ Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.”


Arrisco dizer que nem se o poeta e filósofo português pudesse ter contemplado a existência da internet descreveria tão bem o seu papel em pleno século XXI. Não existem perdedores no ambiente virtual. Todos nós somos repletos de predicados e não ostentamos nem ao menos um defeito para chamar de nosso. Mas todo esse primor tem um preço: pesquisas têm sinalizado o aumento no número casos de depressão e ansiedade ligados a essa busca desenfreada pelo sucesso, conhecida também como “positividade tóxica”.


Isso se dá justamente por esse “pacote” de vida perfeita que nos é imposto pelas redes sociais. Temos que estar felizes, equilibrados e bem-sucedidos o tempo todo, afinal, muitos “posts” nos mostram diariamente que isso é possível. Até porque, como diria o poeta Fernando Pessoa: “Toda a gente que eu conheço e que fala comigo/ Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho/ Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…”; exatamente o retrato da maioria dos perfis disponíveis para a nossa contemplação e sofrimento diário.


Diante desse enorme desafio imposto pelas mídias digitais é preciso compreender que esse ambiente retrata apenas um recorte da vida de uma determinada pessoa. Um recorte, aliás, que não é necessariamente verdadeiro. Problemas fazem parte da rotina de todos nós. Entendermos que sentimentos negativos visitam até os perfis virtuais mais felizes que existem é indispensável para que superemos esse cenário. Não conhecer ninguém que tomou porrada na vida é uma realidade, pelo menos nas redes sociais.


Este artigo é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a linha editorial e ideológica do Grupo Tribuna. As empresas que formam o Grupo Tribuna não se responsabilizam e nem podem ser responsabilizadas pelos artigos publicados neste espaço.
Ver todos os colunistas
Logo A Tribuna