Justiça através do povo: 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil
Essa ferramenta está presente desde 1822, ultrapassando os séculos entre o Império e os dias atuais
Neste ano comemoramos 200 anos do Tribunal do Júri como instrumento de justiça no Brasil. Essa fascinante ferramenta que chama a atenção de tantos cidadãos, especialmente dos estudantes de direito, está presente desde 1822 ultrapassando os séculos entre o Império e os dias atuais.
Na Constituição Federal de 1988 encontra previsão no artigo 5º, inciso XXXVIII, o qual elenca as garantias para o seu exercício, a saber: sigilo das votações (os votos dos jurados são secretos); plenitude de defesa (onde todos os meios de defesa poderão ser utilizados); soberania dos veredictos (em que ao voto dos jurados é garantido o efetivo poder de decisão) e competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.
Cabe ao Conselho de Sentença, composto por jurados que geralmente não tem conhecimento jurídico, decidir a respeito dos crimes que intencionalmente atentam contra a vida. O homicídio (matar alguém), infanticídio (matar, sob a influência do estado puerperal - que são intensas alterações psíquicas e físicas em que a mãe deixa de ter plenas condições de entender os fatos praticados - o próprio filho, durante o parto ou logo após), aborto (provocar a interrupção de uma gravidez) e o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (tanto punível a quem sugere a ideia para alguém se matar, como quem concorda e incentiva tal atitude manifesta ou, ainda, quem presta qualquer tipo de auxílio à prática) são as condutas que nós elegemos como de competência do Tribunal Popular.
Vale lembrar que apesar da decisão no tocante à materialidade e autoria do delito ser atributo dos jurados, há uma divisão de funções com os juízes togados (de carreira), pois cabem a estes dosar e aplicar as penas com base no veredicto emitido pelos juízes de fato. Portanto, os magistrados de carreira não só presidem os trabalhos e os debates entre acusação e defesa, como também aplicam a pena devida em caso de condenação com base na legislação penal vigente e no seu entendimento.
Não é à toa que o Tribunal do Júri desperta tanta atenção da sociedade. Basta observarmos o sem-número de filmes e séries que tem como cenário principal o Tribunal Popular. São os crimes mais humanos que existem, afinal, quem poderá dizer que jamais praticará um homicídio agindo em legítima defesa de quem ama, por exemplo? A repercussão, plenários suntuosos, os debates acalorados, a participação intensa da sociedade na fiscalização dos trabalhos são apenas alguns exemplos do porquê esse formato de julgamento ultrapassa os séculos e funciona até hoje como ferramenta eficaz de justiça.
Isso não quer dizer que não sofra críticas, muito ao contrário. Diversos operadores do direito desaprovam a instituição do Júri. Parte deles a considera obsoleta, cercada de formalismos e formalidades que muitas vezes obstaculizam a aplicação das normas penais. Outros consideram temerário atribuir ao cidadão leigo o julgamento de crimes tão complexos, permitindo que erros judiciários graves aconteçam. Defendem, assim, que os julgamentos deveriam ser realizados por juízes de carreira.
Ouso discordar. Como advogado criminalista atuo perante o Tribunal do Júri há quase 20 anos e posso afirmar que o tirocínio, o conhecimento de vida, a perspicácia dos jurados leigos são indispensáveis para a realização desses julgamentos. Em sua obra “Quatro Gigantes da Alma”, Emilio Mira Y Lopes nos apresenta os quatro valores emocionais que compõem a alma humana: o medo, a ira, o amor e o dever. E são justamente esses gigantes que são confrontados num julgamento com acusações que versam a respeito de crimes dolosos contra a vida. Desta forma, esses sentimentos não podem ser avaliados apenas com a letra fria da lei. O Tribunal do Júri é o palco para julgamentos de crimes que tocam a alma humana e são os cidadãos comuns e não os juízes togados que devem decidir o destino nesses casos.