Conexão Argentina: Morreu de frio na rua atrapalhando o tráfego

Nesta edição da coluna, Samuel Rodrigues aponta as consequências do frio intenso que faz neste período do ano no país

Por: Samuel Rodrigues - De Buenos Aires  -  16/07/19  -  21:03

O aquecimento global, apesar dos negacionistas de plantão, é bastante perceptível em Buenos Aires, que tem estações muito marcadas. Se no verão, o calor úmido torna o ar irrespirável, na época mais fria do inverno, as atividades de lazer ao ar livre acabam limitadas aos dias ensolarados. No outono, as árvores e plantas secam, na primavera, florescem. Ou pelo menos costumava ser assim.


O ciclo vem mudando e a época de frio encurtou: antes começava em maio, com temperaturas próximas de zero à noite, e durava até outubro ou novembro. Nos últimos anos, porém, vem se limitando a julho e agosto, segundo minha péssima memória, uma fonte nada empírica.


Neste retorno da coluna Conexão Argentina, após um período de afastamento, achei que o leitor gostaria de conhecer essa realidade que parece tão distante para os brasileiros.


Na maior e mais rica cidade da Argentina, as poucas semanas de frio intenso registradas neste ano não pegaram muita gente de surpresa, é verdade. Explico: por aqui é comum que as residências tenham algum tipo de sistema de aquecimento, que pode ser alimentado a gás ou elétrico, com emissores de calor de parede ou até piso radiante, este provavelmente o método mais sofisticado.


Quando o frio finalmente chega, trazido por alguma onda polar da Patagônia, o portenho médio se refugia em casa, liga o aquecedor, tira o edredom de plumas do armário, abre um bom Malbec e curte seu calorzinho privado.


Quem sofre de verdade são os pobres, principalmente os que vivem em residências mais precárias, longe da elegante Recoleta ou de Palermo. Em certas comunidades carentes, aqui chamadas de “villas” (lê-se “vichas”), não muito diferentes das favelas brasileiras, as moradias de chapa ou madeira não oferecem quase isolamento térmico. Na Villa 21, que eu conheci em 2014 levado por Pepe di Paola, um padre que realiza trabalhos sociais nos bairros pobres, as formas mais comuns de aquecimento são a lenha, o carvão e o papelão, com toda a toxicidade que geram quando queimados. 


Quase todos os anos morre gente por causa do frio, seja em algum incêndio gerado por fogueiras e lareiras, seja pela completa ausência de meios de aquecimento. Este ano não foi diferente. Sergio Zacariaz, de 52 anos, foi encontrado morto no centro da cidade, a poucas quadras da Casa Rosada, sede do governo federal, após uma das noites mais frias do ano, no início de julho.


O morador de rua foi culpado de sua própria morte por um secretário municipal, que afirmou que ele não aceitava ir aos abrigos do governo. A afirmação gerou revolta. Até os joões-de-barro do Parque Saavedra, por aqui chamados de “horneros”, porque sua casa parece um forno, sabem que estes centros de acolhimento vivem lotados, especialmente nos últimos anos. 


É interessante notar, como estrangeiro, como o inverno traz consigo uma rede de solidariedade. A exemplo da Campanha do Agasalho de algumas cidades da Baixada Santista, por aqui muitas instituições arrecadam roupas para doação e as pessoas realmente procuram ajudar. 


Em grande parte do território brasileiro, o frio não é fonte de preocupação, para a sorte de muitos. Na Argentina, mais que isso, é um termômetro da própria exclusão social.


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