Era uma vez... em Santos: O sonho verde de Saturnino de Brito para a cidade

Proposta de urbanização do famoso engenheiro impressionou o município, mas não avançou em 1910

Por: Sergio Willians  -  08/08/21  -  19:02
 Do audacioso projeto de Saturnino de Brito, com diversas avenidas arborizadas, o jardim da orla de Santos foi o único que acabou sendo concretizado, duas décadas depois
Do audacioso projeto de Saturnino de Brito, com diversas avenidas arborizadas, o jardim da orla de Santos foi o único que acabou sendo concretizado, duas décadas depois   Foto: Reprodução

Santos, 12 de agosto de 1910. Todos já haviam partido para casa, exceto o chefe da repartição, o Dr. Francisco, como a maior parte dos empregados se referia ao engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito. Ele ainda estava debruçado sobre um imenso mapa da Cidade, concluído horas antes. Seus olhos buscavam por detalhes que, porventura, deixara escapar. Afinal, por mais que tenha sido o chefe do maior projeto de recuperação sanitária do Município, ele tinha inúmeros desafetos, inclusive na Câmara Municipal.


O mapa que Saturnino acabara de desenhar continha sua proposta de urbanização para a parte leste da Ilha de São Vicente, a chamada Barra, que começava a ser ocupada por residências. O engenheiro via com preocupação o avanço urbano e tentava evitar uma ocupação sem planejamento, ponto-chave para os problemas que Santos acumulou nas áreas centrais a partir da segunda metade do século 19, culminando em epidemias e a urgência de um processo de saneamento básico.


Saturnino estava decidido e queria oferecer a Santos um futuro equilibrado. Outra questão que envolvia o projeto era o planejamento do sistema de esgoto desta parte da Cidade. Em 1910, Santos era majoritariamente concentrada entre o Valongo e o Outeiro de Santa Catarina, com alguns avanços na direção da Barra (nome da atual região da orla). Para o leste, já existiam o Paquetá e a Vila Nova. No sudeste, Vila Mathias e Macuco começavam a ganhar forma de bairro.


Próximos ao mar, Gonzaga e José Menino também já tinham seus casarios e algumas ruas e avenidas já se faziam presentes desde cerca de 1890. Todavia, quadras e lotes nestas regiões eram formados sem previsão de áreas verdes, que permitiriam ao Município “respirar” no futuro.


Os hoje famosos jardins da orla nem eram cogitados nesta época - exceto por Saturnino de Brito. Olhando o mapa do engenheiro, é possível perceber que parte de sua ideia foi colocada em prática, mas ainda muito longe do sonho verde do competente sanitarista.


Orla ajardinada


O famoso engenheiro foi o primeiro a imaginar a faixa de orla junto à areia da praia da Barra completamente ajardinada. Esse sonho demorou a ser concretizado e teve que ser debatido junto ao Governo Federal.


Graças a Vicente de Carvalho, a coisa andou e hoje podemos nos considerar privilegiados de possuir este verdadeiro cartão-postal. Na planta de 1910, Saturnino sugeria a ocupação de toda a extensão praiana.


Os canteiros ajardinados eram bem encorpados na altura dos canais 1, 2 e 3, estreitavam na direção da Ponta da Praia e terminavam, na concepção do engenheiro, na altura da antiga Escola de Aprendizes Marinheiros (Museu de Pesca).


José Menino e Marapé


Saturnino nem de longe imaginaria que um espaço no José Menino seria ocupado, no final dos anos 1930, pelo Orquidário Municipal, mas já previa uma grande área verde no entorno da estação de pré-condicionamento de esgoto que existe até hoje no bairro.


Além disso, trechos substanciosos da Avenida Nilo Peçanha, incorporando parte das atuais ruas Dom Duarte Leopoldo e Silva, Manoel Elias Ruiz e Alberto Veiga, chegando às margens da atual Rua Benedito Ernesto Guimarães, no Marapé, não estariam ocupados por residências, mas por um imenso parque verde, com direito a uma lagoa artificial para lazer.


Uma grande avenida eixo, nominada Avenida Municipal, arborizada em seu canteiro central, atravessaria o bairro, cruzando a atual Francisco Glicério (ali chamada de Avenida Saneamento) e chegando até a Avenida Ana Costa (já existente), no trecho onde hoje temos a Praça Independência (que na época nem sonhava existir).


Grandes avenidas


Para Saturnino, a ideia era construir uma extensa e larga avenida acompanhando o leito dos trilhos da Southern São Paulo Railway (antecessora da Sorocabana e Fepasa).


A via ganharia o nome de Avenida Saneamento, talvez pelo fato de começar perto da estação de pré-condicionamento de esgoto. Seu canteiro central foi previsto para ser enorme, ostentando 150 metros de largura e ajardinado. Algo parecido com que o urbanista Lúcio Costa planejou para o eixo central de Brasília. A longa avenida terminava na altura do Canal 3.


Em seguida, viria a Avenida da Barra, um complemento da Avenida Saneamento e que descia na direção da Ponta da Praia, fazendo a mesma função da atual Avenida Afonso Pena. Também apresentava um eixo largo, mas um pouco menor do que o pedaço entre o José Menino e o Canal 3 (100 metros).


Na altura dos canais de drenagem, tanto o de número 4 quanto o 5, havia geometrias de intervenção urbanística privilegiando o verde, por meio de praças que serviam de rotatórias viárias. Na altura do Canal 6, a via bifurcava em outras duas, a Avenida Sul e a Avenida Leste, ambas também com canteiros centrais verdes e largos. A Sul findava na área dos clubes náuticos, enquanto a Leste iria até a altura do atual ferry-boat.


A briga com a Câmara


O engenheiro apresentou a sugestão urbanística à Câmara. Cabia destacar que os eixos viários foram projetados com grande largura e canteiros centrais ajardinados para também facilitar o acesso aos ramais de captação do esgotamento sanitário e distribuição de água. Saturnino insistia na discussão de tornar Santos planejada em seu subterrâneo.


Contudo, tamanha quantidade de desapropriações conflitava com diversos interesses, principalmente dos especuladores imobiliários, o que acabou impedindo o avanço da ideia. Saturnino ficou revoltado e acabou sendo duro com boa parte dos vereadores, principalmente seus desafetos.


Em 1914, o jornalista e escritor Alberto Sousa foi contratado para elaborar artigos que compuseram o livro A Municipalidade de Santos perante a Comissão de Saneamento, com teor ostensivo contra as argumentações do engenheiro.


“O digno chefe da Comissão de Saneamento esqueceu-se de que, segundo seu mestre, só há um princípio absoluto: tudo é relativo. O seu projeto é impraticável. Não é relativo ao nosso estado atual jurídico e nem às nossas atuais condições econômicas”, escreveu Sousa.


No final da briga, Saturnino perdeu a queda de braço e não conseguiu emplacar sua proposta de forma absoluta. Após concluir o projeto de saneamento da Cidade, foi embora e não testemunhou o surgimento dos jardins da orla, ideia que fazia parte de seu sonho para Santos e hoje é um cartão-postal que orgulha todos os santistas.


Sobre o autor - Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça seu trabalho no site Memória Santista.


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