Era uma vez em Santos: A canhoneira pátria

Embarcação de guerra portuguesa foi construída com o dinheiro da colônia lusitana que vivia no Brasil

Por: Sergio Willians*  -  20/03/22  -  21:37
  Foto: Reprodução

Santos, sábado, 21 de outubro de 1905. A cidade estava vestida em galas para receber os tripulantes da celebrada canhoneira Pátria, navio de guerra português que fora totalmente financiado pela Colônia Lusitana do Brasil, algo inédito até então. O braço santista, grande contribuinte do projeto, não via a hora de promover os festejos em honra e regozijo da ocasião. E foi uma baita festa.


Clique, assine A Tribuna por apenas R$ 1,90 e ganhe centenas de benefícios!


A Praça da República e outras ruas do perímetro central foram entrecruzadas por extensos cordões dotados de bandeiras de nacionalidades diversas. Também foram instalados diversos arcos de iluminação a gás, distribuídos ao longo da parte frontal da Alfândega e da Matriz, bem como por toda a extensão da Rua XV de Novembro, transformada então numa ofuscante alameda de luz. Durante as noites seguintes, e por todo o período de permanência dos ilustres hóspedes, Santos se iluminou de forma encantadora.


Na esquina da Rua 11 de Junho (atual Riachuelo) com a Rua XV de Novembro, praticamente em frente à sede da Associação Comercial de Santos, ergueram um belíssimo correto de madeira, guarnecido caprichosamente com galhardetes, escudos e bandeirolas. Belo efeito também foi produzido pela ornamentação externa da sede do Consulado Português, cuja fachada ficou ricamente iluminada por uma miríade de pequeninos focos elétricos e uma constelação de estrelas justapostas à cimalha do prédio.


As casas comerciais da Cidade, atendendo ao apelo da Associação Comercial, bem como ao da imprensa diária local, fechou as portas ao meio-dia, embandeirando suas fachadas e concorrendo para o maior realce dos festejos.


No posto semafórico do Monte Serrat, responsável pela observação da entrada e saída dos navios do Porto, a expectativa pela chegada do navio português era enorme. Enfim, às 11 horas, foi anunciado, pela queima de algumas girandolas de foguetes, a entrada da canhoneira Pátria pela Baía de Santos. Na Cidade, o Tiro de Guerra, então, salvou com 21 tiros os visitantes da nação mãe.


O povo, então, afluiu ao cais num burburinho festivo. Muita gente aglomerou-se em vários pontos altos da Cidade, apenas para testemunhar com os próprios olhos a entrada da famosa canhoneira Pátria pelo Canal do Estuário. Do cais da guarda-moria, então, partiram os rebocadores Dauntess, Santos, Sul América, Paula Pires e Alamiro Malchert, além de diversas outras lanchas particulares, da Alfândega, da Saúde do Porto e vários escaleres, que transportavam os membros da Comissão de Festejos, autoridades civis e militares, representantes da imprensa, cônsules e muitas senhoras e senhoritas. A cena era tal qual o de uma grande procissão marítima.


Duas bandas de música, a do Corpo de Bombeiros e a da Colonial Portuguesa, também foram nos barcos, onde entoaram lindos dobrados, além dos hinos do Brasil e de Portugal. Era quase meio-dia quando toda a “frota santista” se encontrou com a canhoneira Pátria, na altura da Fortaleza da Barra Grande. Tão logo houve a reunião, algumas autoridades passaram para o barco visitante. Em seguida, todos rumaram para o cais da Alfândega, já na cidade santista.


A Pátria se juntou, no lagamar defronte à Cidade, a outras embarcações de guerra que lá já estavam ancoradas, como o cruzador Tiradentes, da Marinha do Brasil; e a canhoneira Panther, da Marinha Alemã, esta em visita ao cais santista.


Dias de glória
Nos dias que se seguiram à vinda da canhoneira Pátria, vários compromissos foram cumpridos pela oficialidade e marinharia do ‘vaso’ lusitano. No dia seguinte à chegada, um domingo, realizou-se uma missa campal no Largo da Matriz, celebrada pelo monsenhor Moreira, a convite do vigário da paróquia, monsenhor Soledade, como uma prova de amizade à Colônia Portuguesa. O coro da missa foi executado pelo corpo de canto do Centro Hespanhol. Após a missa, realizou-se almoço na sede do Consulado de Portugal, durante o qual tocou o sexteto dos cegos, da Casa Culty.


Nos dias seguintes, ocorreram a visita à Câmara Municipal e outras instituições sociais da cidade santista (segunda-feira, dia 23); sessão solene na Beneficência Portuguesa e sessão de patinação no novo Rink Santista (terça-feira, 24); passeio e visita a São Vicente durante o dia, e à noite serenata veneziana na Baía de Santos pelas sociedades do esporte náutico (quarta-feira, 25); visitas à Cidade e banquete no Parque Balneário Hotel (quinta-feira, 26); passeio e lanche no Monte Serrat (sexta-feira, 27); e piquenique nos Pilões (sábado, 28).


Após dias de intensas atividades sociais na região, os oficiais da canhoneira Pátria subiram a Serra do Mar para cumprir uma série de compromissos tanto na Capital Bandeirante como em outras cidades do Interior Paulista, como Sorocaba, Itu e Campinas.


A embarcação portuguesa ficou em Santos até o dia 17 de novembro, ocasião em que partiu de volta ao Rio de Janeiro e, de lá, para outros portos brasileiros. Depois, foi para a costa africana, onde exerceu por alguns anos várias missões especiais.


A embarcação
Os trabalhos para construção da canhoneira Pátria começaram em 28 de outubro de 1901, sendo o primeiro rebite cravado em 17 de abril de 1902. A condução do projeto, no início, estava a cargo do engenheiro francês Louis Émile Bertin. Mas logo ele passaria o bastão para seu conterrâneo, Galligné, e ao contramestre da Oficina de Construções Navais de Ferro do Arsenal de Marinha de Lisboa, Guilherme Júlio de Almeida.


A embarcação de guerra foi construída graças a uma subscrição patriótica que rodou o Brasil a partir de 1890, promovida pelo Grêmio Português do Rio de Janeiro. Ao final, foram apurados cerca de 470 contos de reis (cerca de R$ 57 milhões nos dias de hoje), principalmente junto às colônias lusitanas de São Paulo e Santos. A embarcação consumiu 230 contos de reis (cerca de R$ 28 milhões) e o restante foi utilizado para compra de munições e outras necessidades. O projeto do navio levava a assinatura do engenheiro naval Alfonse Croneau, com colaboração do engenheiro construtor Duarte Sampaio.


O casco foi construído com aço de primeira qualidade, sendo as cantoneiras e chapas fornecidas pela empresa francesa Providence. A linha de flutuação era reforçada por uma cinta de aço-níquel de 15 mm de espessura, proveniente da casa Creusot. A roda de proa, um primor de bom acabamento, de aço forjado, bem como o cadasto, em aço moldado, foi adquirida na Casa Ferminy, também na França.


Um único mastro militar, de aço, tinha a Pátria. Na sua plataforma estava instalada uma metralhadora que, em ocasião de desembarque, poderia ser montada na proa da embarcação. Avante do mastro estava colocada a ponte de navegação, dotada de casa, abrigo e meio para o leme e telégrafos, ficando por baixo desse mesmo abrigo instalada sobre o spardeck, a casa de pilotagem.


A canhoneira Pátria foi lançada nas águas do Rio Tejo, em Lisboa, no dia 7 de junho de 1903, em meio a uma grande solenidade, prestigiada pelo rei dom Carlos I e pela rainha dona Amélia de Orléans, além de oficiais da Marinha, delegados da comissão de subscrição patriótica e numerosa massa popular.


Logo depois de lançada ao mar, a Pátria foi cumprir seu papel nas possessões portuguesas na África (Angola e Moçambique), integrando a Divisão Naval do Atlântico Sul. Em 1905, então, os portugueses decidiram visitar o Brasil para agradecer aos lusitanos aqui residentes pela ajuda fundamental que possibilitou a construção do vaso de guerra. Em Santos, a festa foi considerada das maiores. Nada mais justo para uma cidade que já era considerada a mais portuguesa do Brasil!


*SERGIO WILLIANS É JORNALISTA E PESQUISADOR DA HISTÓRIA DE SANTOS. CONHEÇA SEU TRABALHO NO SITE MEMÓRIA SANTISTA


Logo A Tribuna