Dez anos sem o defensor da memória santista Waldir Rueda

Historiador deixou ensinamentos sobre a importância da luta pelo patrimônio

Por: Sergio Willians  -  22/08/21  -  12:05
 Sempre preocupado com as intervenções em Santos, Rueda verificou em 2010 os testes da linha ampliada do bonde turístico
Sempre preocupado com as intervenções em Santos, Rueda verificou em 2010 os testes da linha ampliada do bonde turístico   Foto: Sérgio Williams

Santos, 2010. Eram quase 23 horas quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, a voz entusiasmada de um bom amigo convidava-me, quase como uma convocação, para irmos, juntos, verificar de perto o primeiro teste do bonde turístico no ramal que estava sendo estendido para os lados do Castelinho dos Bombeiros, Fórum e Catedral. “A essa hora, cara? Já não está meio tarde para essas coisas, não?”, disse eu, confesso, com um pouco de preguiça para sair de casa. “Não! Vamos! Nunca é tarde demais para testemunhar a história acontecendo diante dos nossos olhos!”, replicou o apaixonado historiador Waldir Rueda Martins.


Contemporâneo de minha geração, nascido em 18 de dezembro de 1966, Rueda exibia um brilho nos olhos quando o assunto era a memória da nossa querida Santos. E, como todo inflamado entusiasta, colecionava tudo o que se podia imaginar, desde que fosse relacionado à memorialística santista. Em sua singela casa, localizada na Rua Manoel Elias Ruiz, no Marapé, ele mantinha praticamente um pequeno museu. Colecionava postais, livros, revistas, moedas, fichas de cassino, selos, papéis de propaganda e até telhas, azulejos e pedaços de ornamentos de casas antigas demolidas. Era um defensor ardoroso do patrimônio histórico da Cidade e não pensava duas vezes antes de ir ao Ministério Público (MP), Câmara Municipal e Conselho de Defesa do Patrimônio de Santos (Condepasa), exigindo a proteção de edificações de significativo valor cultural.


Por conta de sua postura insistente e aguerrida, arrumou encrenca com muita gente e chegou a ser ameaçado. No entanto, nunca se intimidou e, não fosse por sua luta, prédios como o da antiga Faculdade de Filosofia, na Rua Euclides da Cunha, teriam virado pó. Rueda era uma figura carimbada na redação de A Tribuna. Praticamente toda semana ele levava uma denúncia ou informações sobre fatos relevantes que aconteciam com o patrimônio da Cidade. Ele comprava brigas variadas, como a da preservação de uma ossada de baleia encontrada em São Vicente, a repatriação de trólebus santistas abandonados no Interior e a segurança nos cemitérios, em função dos roubos constantes de estátuas e placas. Isso sem falar dos inúmeros imóveis históricos que corriam risco de demolição e acabaram tombados por força da atuação voluntária do historiador, que agia como uma espécie de “consultor informal” do MP.


Outro feito foi com a própria legislação. Mesmo não sendo vereador, Rueda conseguiu junto à Câmara emplacar a Lei Complementar 496, de 21 de maio de 2004, que obrigava que fossem fotografados, antes de serem demolidos, todos os imóveis com mais de 50 anos. Todas essas ações ousadas colocaram Rueda num patamar diferente como historiador. Ele não o fazia pela vaidade, mas, sim, pela paixão à memória de Santos. E compartilhava seu conhecimento com os outros. Vez em quando, promovia roteiros históricos a grupos interessados e, com isso, seguia os mesmos passos de sua mentora e referência, a professora Wilma Therezinha Fernandes de Andrade, que orientou seu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC) de História na UniSantos. Wilma o inspirava, pois também era uma árdua defensora das causas históricas santistas, sendo referência em tombamentos, como o dos Casarões do Valongo, e na luta pela instalação do Museu Pedagógico dos Andradas na Casa de Câmara e Cadeia (o que, infelizmente, não aconteceu).


Ainda que aparentemente fosse visto como um esbravejador, Rueda era dono de uma alma sensível. Bastava olhar para as origens de suas lutas. Em 1986, quando tinha apenas 19 anos, ele criou a Associação de Amparo aos Animais, em Praia Grande. Outra de suas paixões era o violino. Via de regra, Rueda participava de grupos ligados à igreja para se apresentar. Apesar do amor pela história, ele só se graduou aos 37 anos, mas isso era visto como algo positivo, por conta da maturidade amealhada durante sua vida. Prova disso é que seu TCC acabou se tornando um livro aclamado: Braz Cubas: Homenagem a uma Vida, da Editora Comunnicar. O historiador foi convidado a falar sobre a obra no badalado Programa do Jô, apresentando por Jô Soares, na Rede Globo, em 2008.


Foi nessa época que nossos caminhos se cruzaram. Eu estava produzindo um livro sobre a história dos bondes de Santos e ele também. O bom é que trilhávamos caminhos diferentes em termos de estilo literário. Enquanto eu escrevia um romance com pitadas inspiradas em Harry Potter e Código da Vinci, Rueda desenvolvia um compêndio gigantesco de dados sobre a trajetória de 100 anos do mais importante sistema de transporte da Cidade. Enfim, era algo muito mais complexo do que o meu projeto (lançado em abril de 2009, nos festejos do centenário do bonde elétrico). Rueda bem que tentou viabilizar o seu trabalho e eu ajudei o quanto pude, inclusive inserindo-o na Lei Rouanet, mas não houve tempo. Sua pesquisa ficou presa em seu computador.


No final de 2010, convidei-o para trabalhar no projeto Almanaque Santista, do Instituto Histórico e Geográfico de Santos, o que levantou o seu astral, uma vez que ele voltara a sofrer as dores de um câncer descoberto em 2002. Duas semanas antes de sua morte, em 21 de agosto de 2011, nos cruzamos inesperadamente no Pronto-Socorro da Beneficência Portuguesa. Eu estava com cólica renal e ele sofria com as dores provocadas por sua doença cruel, bastante abatido. Aquela foi a última vez que trocamos ideia. Sua partida deixou uma lacuna na luta pela história de Santos. Daquele momento em diante, nunca mais recebi um telefonema no meio da noite para “testemunhar a história acontecendo diante dos olhos”. Porém, nesses dez anos de ausência do amigo Rueda, ainda que não tenha o seu ímpeto aguerrido, tive a felicidade de construir um caminho que certamente ele se orgulharia, assim como eu me orgulhava de ser seu amigo.


 Em 1986, com 19 anos, Rueda fundou a Associação de Amparo aos Animais, em Praia Grande, sendo o primeiro presidente
Em 1986, com 19 anos, Rueda fundou a Associação de Amparo aos Animais, em Praia Grande, sendo o primeiro presidente   Foto: Reprodução

Sobre o autor - Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça seu trabalho no site Memória Santista.


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