Bondes de Santos: os 150 anos de um patrimônio santista

O sistema de transporte responsável pelo desenvolvimento da cidade até hoje provoca lembranças e desperta curiosidades

Por: Sergio Willians  -  17/10/21  -  07:30
 Os primeiros bondes levavam passageiros do atual centro para a região da orla (Praia da Barra)
Os primeiros bondes levavam passageiros do atual centro para a região da orla (Praia da Barra)   Foto: Vanessa Rodrigues/AT

Santos, 9 de outubro de 1871. Segunda-feira. A população estava eufórica e curiosa. Primeiramente pelo fato de a Primavera estar se aproximando, o que levaria embora a desconfortável sensação causada pelo frio úmido típico da região. E, o mais importante, que a cidade santista estaria ostentando o privilégio de se tornar a primeira do Estado de São Paulo a contar com um sistema de transporte urbano de passageiros por trilhos, o tão comentado e celebrado "bonde*", sensação na capital Imperial (Rio de Janeiro) desde 1859. O sistema, tido como revolucionário na época, puxado por parelhas de burros (Tração Animal-TA), logo se espalharia pelo país, sendo inaugurado em Salvador (BA) em 1860; Porto Alegre (RS) em 1864 e Belém (PA), em 1870. E foi justamente neste ano que o empresário português radicado em Santos, Domingos Moutinho, sabedor do sucesso que o meio de transporte ganhava naquelas quatro capitais, resolveu investir num projeto de linha férrea urbana na cidade portuária paulista, ligando o Largo do Rosário (atual Praça Ruy Barbosa) à distante Praia da Barra, na altura do Boqueirão.


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A rota foi escolhida como uma espécie de reedição de uma linha de carruagens criada pelo italiano Luís Massoja que, em 1864, lançara um serviço de transporte de passageiros ligando as duas "pontas da cidade". As tais carruagens, também chamadas de "gôndolas", partiam do Largo do Chafariz (atual Praça Mauá) e terminavam sua viagem na Casa de Campo da Praia da Barra (atual esquina da Epitácio Pessoa com Rua Osvaldo Cruz), depois de viajar por cerca de seis quilômetros. Apesar da importância do serviço para a cidade, os negócios não deram certo. Massoja faliu em menos de dois anos e os santistas mal tiveram tempo para se acostumarem com os passeios de carruagens para a bucólica orla praiana.


Com a desistência de Massoja e o fim das gôndolas, a cidade passou a discutir novas soluções para o transporte coletivo de passageiros. Mesmo com o surgimento da Companhia de Diligências Guanabara, que ocupou por curto período o mesmo serviço do italiano, os santistas iniciaram uma discussão sobre a possibilidade da introdução do sistema de transporte sobre trilhos, o tal bonde.


Santos já possuía alguns caminhos férreos urbanos, da época das primeiras gôndolas, pelas bandas do cais do Bispo e em boa parte do trecho que atravessava o porto do Consulado. Porém, tais trajetos serviam apenas para carrinhos de transporte de carga, os troles, coisa bem simples. Ainda assim, o advento dos troles foi considerado um grande avanço, principalmente pelo fato de que aquele tipo de transporte não danificar as ruas. O sucesso dos carrinhos de carga do cais animou os conselheiros municipais (vereadores), que passaram a discutir, emergencialmente, sobre a possibilidade da criação de um serviço que pudesse transportar pessoas para vários lugares. A vantagem era óbvia. Tratava-se de um sistema mais organizado e seguro do que as carroças que circulavam pela cidade. Outra vantagem era a economia em relação à manutenção das ruas, uma vez que os bondes não danificavam o leito carroçável. Isso sem falar do conforto. Os carris sobre trilhos não produziam solavancos. Sendo assim, a estabilidade proporcionada nas viagens garantiria mais conforto e menos dores lombares, normalmente provocadas quando dos passeios em carroças ou sobre cavalos, burros ou mesmo em carros de boi.


As discussões, entretanto, acabaram se arrastando por muito tempo, uma vez que a maioria dos interessados em instalar os bondes fazia exigências inexequíveis. Foi aí que surgiu Domingos Moutinho. Em 1º de abril de 1870, ele conseguiu obter da Câmara de Santos a concessão para criar e explorar, por 50 anos, ou seja, até o ano de 1920, o primeiro serviço de bondes na cidade. Porém, corria à língua solta entre os santistas que o empresário só conseguira tal concessão porque celebrara um acordo direto com o então presidente da Província (cargo equivalente ao de Governador do Estado), Antônio Candido da Rocha, que lhe garantiu o negócio, passando por cima da autonomia dos conselheiros municipais. Desta forma, a autorização do Moutinho foi viabilizada por decreto provincial e qualquer outra não teria validade legal superior. Assim, depois de colocar, quase que literalmente, a mão no barro, o empresário concluiu a instalação dos trilhos da primeira linha de bondes no começo de outubro de 1871.


Ao longo das décadas, o sistema de bondes da cidade de Santos foi sendo ampliado, com a contribuição de outros empresários do setor privado, como João Éboli, Mathias Casimiro Alberto da Costa, os irmãos Jacob e Antônio Emmerich e os ingleses da The City of Santos Improvments, empresa de capital britânico que operou o sistema, de forma exclusiva, de 1904, quando ela adquire seu último concorrente, a Ferrocarril Santista, até o final de 1951, quando é encampada pelo município de Santos, que cria o Serviço Municipal de Transportes Coletivos (SMTC). Vinte anos depois, em fevereiro de 1971, faltando apenas oito meses para completar seu centenário de atividades, os bondes de Santos deixam de existir como transporte coletivo público na cidade, deixando também uma legião de órfãos de um sistema que testemunhou milhares de histórias, de santistas de várias gerações.


Em junho de 1984, o bonde ensaiou um retorno como atividade turística, com uma linha que circulava por 1.800 metros entre os canais 4 e 5. Durou até 1987. Em setembro do ano 2000, depois de investir pesado no resgate dos trilhos do velho Centro, a cidade de Santos ganhava uma linha turística que até hoje se orgulha, projetando o município como um polo histórico sobre o sistema de transporte urbano sobre trilhos, no chamado "Museu Vivo dos Bondes".


Os santistas devem mesmo celebrar esta data histórica. Este colunista teve o privilégio de também colaborar com esta linha do tempo, lançando em 2009, durante as festividades dos 100 anos do bonde elétrico (o sistema foi eletrificado em abril de 1909), o romance "Bonde de Santos", que oferece ao público leitor uma forma diferenciada e leve a maravilhosa história dos carris santenses.


A palavra bonde, vem do inglês "bond", que significa "ligação". Ou seja, ligavam pontos da cidade onde, antes deles, só se era possível chegar a pé ou de carruagem. Os bondes foram de grande valia para um início de modernização e benefício da população.


Sobre o autor: Sergio Willians é jornalista e pesquisador da história de Santos. Conheça seu trabalho no site Memória Santista.


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