Covid-19 na periferia de Santos escancara dificuldade na maior comunidade sobre palafitas do Brasil

Moradores da Vila Gilda e alunos do projeto Arte no Dique tentam superar a pandemia e as dificuldades do dia a dia: "Às vezes, moram quase 10 pessoas num quadrado"

Por: Tatiane Calixto & Da Redação &  -  14/03/21  -  09:32
Comunidade do Dique da Vila Gilda é uma das mais carentes da Baixada Santista
Comunidade do Dique da Vila Gilda é uma das mais carentes da Baixada Santista   Foto: Irandy Ribas/Arquivo/AT

Maior comunidade sobre palafitas no Brasil, o Dique da Vila Gilda, em Santos, fica no Rádio Clube, bairro que em conjunto com os vizinhos Bom Retiro e Castelo reúne 3 mil casos de covid-19 em um ano - 8% do total de registros na Cidade. Ao menos oficialmente, pois as notícias de pessoas com sintomas e sem confirmação médica correm pelos becos. É lá que fica o projeto Arte no Dique, um dos principais polos de atividades socioculturais do entorno e que agora precisa se reinventar para enfrentar os impactos da pandemia, assim como os jovens da periferia.


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“Enfrentar a pandemia na periferia é mais difícil. Conheço gente que, às vezes, não tem dinheiro para comprar um álcool em gel e só possui uma máscara”, diz Natanael Nicolas Alves dos Santos, de 18 anos. O tão exigido distanciamento social parece utopia em alguns locais. “As moradias são pequenas. Às vezes, moram quase 10 pessoas num quadrado”, afirma o garoto, que participou das oficinas do Arte no Dique.


Porém, o mais difícil para Nicolas foi completar 18 anos neste momento. “A pandemia me impactou porque veio na idade em que você ganha mais responsabilidade. Ainda mais no meu caso, que sou o homem da casa. Moro com minha mãe e minha irmã”.


É assim desde que ele tem 15 anos. Mas o desemprego somado a todos os impactos da covid-19 foi uma pressão ainda maior e que o instituto conseguiu aliviar. “Eles me contrataram para ser ajudante. O Arte no Dique foi uma luz no fim do túnel”, resume Nicolas, feliz.


Alunos do projeto Arte no Dique tentam superar a pandemia e as dificuldades do dia a dia
Alunos do projeto Arte no Dique tentam superar a pandemia e as dificuldades do dia a dia   Foto: Carlos Nogueira/AT

Educação


A pandemia atinge crianças e jovens do mundo inteiro. Mas nas comunidades mais vulneráveis, os problemas se somam a outros enraizados há tempos, o que exige atenção especial. O desafio das aulas remotas, por exemplo, ganha contornos maiores.


“Não gostei muito da aula on-line. O meu celular travava muito e eu não conseguia entender a aula”, conta Maicon Gabriel de Souza, de 13 anos. A adaptação das aulas foi um obstáculo a todos os alunos, mas entre os mais vulneráveis a dificuldade em se adaptar leva a um risco alto de evasão.
Segundo a assistente social do Arte no Dique, Claudia Maria Aires Parra, mesmo com a paralisação de boa parte das atividades presenciais, o instituto continuou atuando. E uma das ações foi um trabalho forte de busca ativa e distribuição das atividades escolares impressas para estudantes que não tinham acesso on-line.


“Os colégios começaram a nos procurar pedindo auxílio e percebemos que muitos alunos que tinham evadido ou não estavam participando das aulas on-line das escolas, no fim, estavam em contato com a gente”, conta Claudia.


A proximidade do projeto com os estudantes foi fundamental e acabou reforçada porque o instituto também conseguiu doações e distribuiu às famílias itens como cestas básicas. “A pandemia impactou na oferta de trabalho. Isso atingiu a todos, mas aqui já era um problema que só cresceu”, avalia a assistente social.


É difícil tratar da covid-19 sem falar no medo. Principalmente para quem viveu de perto a doença. Alicia dos Santos Rodrigues, de 11 anos, conta que a rotina na pandemia está cansativa. No começo, separar o horário das aulas on-line, cuidar da casa e da irmã mais nova era puxado. Mas o pior foi quando a mãe pegou o vírus.


Para conseguir manter o isolamento, ela teve que ficar 20 dias na casa de uma tia. O primo, Apolo Henrique Correa dos Santos, de 11 anos, recebeu as primas, mas confessa que teve medo pelos tios. “Nunca imaginei que meus tios pegariam. E, aí, eu fiquei com medo de todo mundo pegar”.


Bryan Farias, de 12 anos, temeu pelos avós, que também tiveram covid, e entendeu que a saudade daqueles de quem foi obrigado a manter distância era o remédio para o momento, ainda que amargo. “Com a pandemia, fechou tudo. Ficava só brincando com minha irmã e com o meu cachorro”.


Para Iorran de Almeida, 14 anos, a pandemia “assustou muito”. Porém, ele conseguiu manter a mente ocupada com uma rotina que já tinha. “Eu ajeito as coisas, faço comida. Só senti mais falta dos meus amigos porque pela internet não é a mesma coisa”.


Cansaço


Após mais de um ano convivendo com a pandemia, Guilherme Daniel da Silva Ramos, 15 anos, confessa cansaço. Porém, a maior preocupação dele foi a interrupção de cursos que o ajudariam no desenvolvimento emocional. “Eu quero que tudo isso passe para concluir meu curso de francês e um curso profissionalizante”.


“O ruim da pandemia é ficar muito tempo trancada em casa”, diz Marcelya Santos, de 14 anos, que mora com oito pessoas. No caso de Gabrielly Alves, 11 anos, falta gente em casa. No meio da pandemia ela perdeu a mãe. O pai já havia morrido quando ela era menor. Hoje, ela mora com o irmão. “Está sendo dolorido”, resume.


“Quando soube da morte da mãe dela, entrei em contato e logo ela perguntou quando ia ter aula, mostrando o quanto precisava da ajuda das atividades do projeto. Agora, na pandemia, todos eles sentem muita falta do Arte no Dique. Então, nosso trabalho também está sendo de escuta”, conta o educador Edson Adriano dos Santos, o Cabeça.


Tanto que, apesar das aulas de percussão não estarem sendo realizadas, Cabeça preparou exercícios que os garotos podem fazer em casa, inclusive, com travesseiros, numa forma também de extravasarem.


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